A visão
Ana entrou na
rua que não era mais a sua e estacionou o carro preto à esquerda do edifício no
número 282, próximo à esquina. Uma árvore baixa, ainda pequena, encobria um pouco
o automóvel e impedia que a motorista fosse vista da calçada. A manhã de outono
estava agradável; airosa com suas cores delicadas da luz morna de um sol que
ainda não despertara completamente. Ana amava as manhãs como esta, de céu azul
claro quase sem nuvens, e sentia-se em paz. Quase completamente feliz.
Eram 8h de uma
quarta-feira lenta e Ana pensava em tudo que teria que fazer naquele dia
enquanto aguardava. Adiantara a saída de casa, não muito longe dali, com a
desculpa de que tinha um compromisso de trabalho cedo pela manhã. Mentira,
porém, sem remorsos, se despediu do namorado como de costume. Jantariam juntos
naquela noite antes do jogo de futebol. Eram muito boas as noites caseiras de
quarta-feira.
Ana gostava do
namorado, até bastante, apesar de não ter planos claros e objetivos estabelecidos
com ele. Moravam juntos há alguns meses e entendiam-se bem. A relação poderia durar
muito, para sempre. Ela poderia também acabar no ano que logo vem e nada
mudaria; as manhãs de outono continuariam agradáveis e belas para ela e a vida
seguiria tranquila.
Todas as quartas
essa era a rotina clandestina de Ana. Despertar um pouco mais cedo e sem
preguiça, arrumar-se bem para estar bonita, inventar um motivo plausível para a
tal saída-fora-de-hora, prometer um bom jantar para antes da partida de futebol
e desviar-se de seu caminho usual para ficar parada por alguns minutos, meia hora,
numa esquina conhecida da cidade. Ela sabia
que as mentiras não eram coisa boa; mesmo as bobas como essa. Afinal, e no
final das contas, ela nada faria para além de olhar. Que mal há em olhar?
Como todos os
dias, entre 8h e 8:20h da manhã o portão do edifício se abriu. De camiseta
branca e larga, bermudas longas e óculos escuros ele saiu, detendo-se um pouco
para uma breve conversa com o porteiro. Ana observou com atenção. Ele estava
bem, parecia alegre e bem disposto. Os tênis eram novos, e ele levava seu
sorriso largo e divertido; o sorriso mais bonito que seus olhos já tinham visto
na vida. Ana sentia tantas saudades das palavras e da voz daquele menino; do
seu menino.
João despediu-se
do porteiro e seguiu à direita para a estação de Metrô caminhando sem pressa
como de costume fazia. Ana observou-o até que dobrasse a esquina. Ele estava
lindo; estaria sempre lindo aos olhos dela. Ligou o carro e, apesar do pesar
das manhãs de quarta-feira, ela sentia-se bem. Ele estava bem e ela podia
seguir tranquila por mais uma semana. À noite haveria futebol.
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