Mostrando postagens com marcador Contos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Contos. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Montanhas de Algodão

 


Montanhas de Algodão

 

Ana dirigi seu carro numa noite chuvosa e gelada sem prestar muita atenção ao que faz. O frio espantara a lua e as estrelas de um céu escuro e mais solitário; ruas vazias. Uma luz vermelha para o mundo, e os olhos se põem no céu enquanto no rádio do carro Eddie Vedder canta Nothing is as it seems.

No céu as nuvens ganham a forma de uma cordilheira etérea, o céu e o chão confundem-se na escuridão e para olhos distraídos agigantam-se montanhas acinzentadas de algodão. Nada é, realmente, o que parece. E tantas vezes a ilusão é tão mais bela do que a realidade. Pensou a mulher encantada por nuvens e montanhas.

Pois, sem querermos fugir da realidade, já que ela é tudo o que temos, não há como negar que existe uma parte de nós que quiçá nunca tenha deixado de ser infantil e sonhadora. Uma parte crente no mundo invisível que habita toda a gente que cultiva a beleza da inocência de olhos pueris.

Por que nos escondemos tanto do mundo, questiona-se Ana, ao mesmo tempo que ela se lembra o quão belo foi o jovem Vedder. Sorri a menina que nela habita. Sempre lhe foi engraçado como todas as vezes que ouvia o nome de Eddie Vedder, ela se lembrava de Darth Vader. Não, realmente não há nenhuma relação para além de umas poucas letras de um sobrenome. Como não amar Lord Vader? Questiona-se ela. Yeah, nothing is as it seems. And that’s what we call a train of thoughts.

Chaos in my mind while the world seems to sleep. Refletiu Ana. Refleti eu. Qual o tamanho da minha casa habitada por Ana? O quanto ela é real? Ana sou eu? Sim, em parte. Não na realidade.

A cordilheira de nuvens se move diante dos olhos pensadores. O sinal de trânsito torna-se verde e o mundo põe-se em movimento. Nada mais de cadeia de pensamentos. Nada mais de sentimentos a inundar a mente.

Ana, acelera o carro e freia os pensamentos.



sábado, 15 de outubro de 2022

Olhos

 




Olhos

 

Ana fechou os olhos secos. Há tanto tempo abertos, escancarados, desidratados; esperando enxergar algo inexistente. Aquela mulher pequena fechou os olhos para melhor ver o que se passava pela alma dela; aquele lugar onde ela habita, onde poucos, muito poucos, habitam tranquilos como se o tempo não existisse. O amor nunca termina. Fica apenas escondido dos outros e de nós mesmos por detrás de um grande armário, no fundo de uma gaveta.

Ana fechou os olhos cansados para procurar no escuro de toda a existência o amor dela. Para saber e perceber se ele ainda respirava, mesmo que pouco, aos poucos. Mesmo que fraco como um fiapo; ajudado por aparelhos. O amor nunca termina. Apenas seca escondido na terra, como secos estavam os olhos da menina. Porém, basta chover, não? Pensou ela.

Ana fechou os olhos, sem muita vontade de abri-los depois. Queria apenas estar. Sem pensar, sem saber, sem querer. Queria ser um grande jatobá carregado de flores e frutos, sozinho no meio de uma planície de gramínea rasteira e montanhas ao fundo. Sem olhos de gente por perto a mulher de tronco e galhos, cheia de folhas, seria feliz a ouvir o canto dos passarinhos que por seus galhos montassem seus ninhos.

Ana abriu seus olhos, e o mundo cá fora não lhe parecia tão belo quanto toda a planície que ela concebia por detrás da retina. E pensou, tranquila, que seria melhor ser árvore grande a olhar os campos de cima. Suas flores abertas a perfumar o ar, seus frutos maduros tombando por terra, seus galhos bercinhos para os ovos de passarinhos... O amor não termina, não morre. Apenas se esconde dentro do coração da gente pelo resto da vida.

Ana fechou os olhos.

 

domingo, 7 de novembro de 2021

Em branco

 



Em branco

 

João abriu a porta para um inconcebível corredor branco sem fim; sem janelas, sem portas, sem ruídos. Apenas o insípido e tão hermético branco.

Ele acordara zonzo, sem saber bem onde e quando estava. A respiração era pesada com o coração a bater reticentemente, e João sentia-se confuso enquanto sua mente corria em todas as possíveis direções tentando entender a realidade.

Segundos longuíssimos...

Que dia era aquele? Domingo? Estou sozinho aqui? Onde é mesmo aqui? Morri? Não morri, pensou ele. Não me sinto morto. Como é sentir-se morto? Muito diferente de estar vivo? Eu estava vivo? Quando? Quanto?

João fechou a porta azul clara para proteger-se da brancura infinita daquele mundo inócuo e assustador. No quarto havia alguma cor. Uma cama macia, mesa e cadeira de madeira, uma jarra d’água quase vazia, uma planta calada; muito seca. A um canto uma grande estante cheia de livros e discos. Ao lado um toca-discos antigo. Pela janela de vidro via-se o mar ao longe.

Não moro mais perto do mar. Lembrou-se o homem enquanto olhava pela janela. Não havia vivalma pelas ruas pelo que ele percebia. O mundo estava lindo, iluminado, morno e vazio. O mundo e o corredor não tinham som. Será que estou surdo? Pensou João. Não. Não pode ser. Por que ele estaria surdo de um repente?

Escolheu um disco aleatoriamente. Um disco de Cartola... Em alguns segundos “Peito Vazio” ecoava pelo quarto de João. O mundo estava em silêncio apenas para ouvir ao Cartola; pensou ele. E um sorriso suave fez-se no rosto dele. Esta realidade não está tão má assim. Finalmente faz-se jus a um gênio tão pouco compreendido. Seu Agenor merecia tal reverência.

João passou a chave na porta sem coragem para abri-la novamente. Escolheu um bom livro e, como se nada mais importasse, deitou-se confortavelmente na cama para ler aproveitando a luz do dia que entrava tranquila pela janela.

O mundo deixou de existir.

domingo, 27 de outubro de 2019

Desperta




Desperta

Ana observa o teto branco e silencioso do quarto há alguns minutos sem se mexer. Lá fora, na cidade, um dia de verão começara como sempre: apressado, abafado e sem qualquer intenção de amenizar as dores daqueles que ocupam as ruas. Um ônibus acelera pesado com a barriga cheia de gente suada cedo pela manhã, uma ambulância passa anunciando a finidade da existência humana, carros sem paciência buzinam.

A vida se move lá fora enquanto Ana permanece, imóvel, pensando no sonho daquela manhã. Ana sonhara com João. E isso, agora, lhe parecia não fazer qualquer sentido. Há anos não o via, não se falavam mais há algum tempo e, depois de tudo, Ana aceitava que seus sentimentos não faziam qualquer sentido. Eles eram uma bobagem infantil, um capricho teimoso quiçá; uma fantasia antiquada. João não fazia mais parte de sua vida e Ana sentia-se melancólica às 7:30 da manhã.

O tal sonho tinha sido tão real com seus cheiros e gostos. Ana podia ainda sentir-se dentro do abraço de João e tal fato não se acomodava à realidade. Nunca um sonho com João tinha sido tão real e em tantos anos eles foram tão parcos; dois ou três, talvez. Porém, agora, numa contradição cruel, antagônica à realidade, sempre que fecha seus olhos Ana pode ver João como não o tinha visto ainda.
   
No sonho eles eram muito mais jovens do que quando se encontraram. Ele tinha já os cabelos longos e ela ainda dançava. Estava dançando no meio do sonho; dançando apesar de não poder ouvir qualquer música. João assistia a tudo sentado no meio da multidão. E a olhava sabendo que ela era sua. Ele a observava tranquilo e Ana se sentia bem como antes. Como quando João estava com ela e o Mundo fazia mais sentido.

Final da apresentação e lá fora faz frio, mas no meio do abraço de João a existência da bailarina era morna, feliz. O rosto dele se aproxima e Ana pode ouvi-lo sussurrar palavras no seu ouvido; palavras esquecidas; perdidas pelo caminho. Ana sorri e eles se beijam como sempre. Como se naquele momento o ar fosse acabar...

Sem querer se mover, Ana observa o teto branco do quarto e ouve a vida lá fora sabendo que não há lugar para sonhos no seu dia. Fecha os olhos mais uma vez a menina.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

A saga ínfima da borboleta



A saga ínfima da borboleta

Ana achara bonito ser borboleta a encantar aos olhos de quem ao longe a observava. Havia algo de poético em todo o mistério daquilo que não se poderia ter em tempo algum. Algo que desde a distância se admira mas que, apesar de todos os poréns e os entretantos que as mentes criativas possam imaginar, jamais se poderia ter. Algo raro; algo delicadamente caro.

E assim, munida de muitas cores, a menina deixou-se levar pelas luzes da lamparina que ao longe ela acreditava encantar. Voos acrobáticos e poemas desleixados; com toda a coragem do mundo contida em poucos centímetros de um pequeno ser alado, Ana aceitou, sem qualquer pudor, todos os sentimentos que sentia.

Sem necessidade alguma de uma qualquer comprovação que à lógica muita falta faria, quiçá porque a lógica não pertença, por essência, ao “métier” do existir das borboletas. Ana, transformada pela sua experiência kafkiana tropical, caminhou, mulher-borboleta, em direção à luz sem piscar; atenta e enlevada.

Por anos, em sua busca que em muito às cruzadas se assemelhava, a borboleta atravessou florestas, sobrevoou montanhas, cruzou o mar e perdeu-se por ruas de cidades por ela desconhecidas para enfim, depois de muito querer, próxima à luz estar. Encantadora luz que de perto ainda mais a encantava, tão rara.

Porém, transformada em borboleta, durante a longa jornada a menina não percebera claramente o que ali se passava. Ana ignorou a todas as regras e leis que a natureza da realidade nos mostra a todo instante e todo santo dia.  A borboleta, para a luz, não seria, jamais, nada para além do que ela veramente era: apenas um inseto bonito que, por instantes se admira antes de seguirmos, sem apegos, adiante.


domingo, 15 de julho de 2018

Einstein




Einstein

Ana esqueceu-se do porquê abrira a pequena gaveta branca. Buscava algo, mas, num repente, perdera o foco e a tranquilidade que a acompanhavam nos últimos tempos. Uma foto esquecida, lembrança a respirar suave sob um caderno antigo e cheio de ilusões balzaquianas, roubara seu sossego. João ainda estava ali, calado, de tocaia atrás de um grande carvalho que habita a cabeça dela.

O som de uma ambulância atravessa a janela do pequeno apartamento e abafa, por um segundo, o pensamento da menina. A vida continua rotineira e pacífica... Contudo, como sempre, os olhos dela perdiam-se nos dele como se houvesse algo fundamental a descobrir por trás daquelas retinas. Ana estava, uma outra vez, à deriva em seu mar verde.

O oceano que nela habita transbordara sem avisos, sem que ela tivesse se apercebido claramente do que acontecia. Lágrimas, soluços e o nó na garganta ainda estavam lá e este era um fato inesperado. Por quê? Pensava ela. Por que todas as coisas tiveram que correr assim: ironicamente realistas e debochadas? Uma segunda ambulância passa sob sua janela, e Ana fecha a gaveta sem barulho para não acordar mais alguma outra memória exilada.

Anos se apresentavam como dias naquele momento num tempo relativamente imperfeito, a fazer com que tudo que não existia mais há tanto tempo - João perto dela – parecesse real; atual. Não o era. Ana lembrou-se de Albert Einstein e da sua relatividade do tempo como se isso pudesse explicar o absurdo de algo há tanto passado fazer-se ridiculamente presente. O tempo passa de maneira distinta em situações diferentes. Pois, suspirou ela, dentro da gaveta branca ele arrasta-se lentamente.


domingo, 22 de outubro de 2017

A visão


A visão

A polícia chegara não mais de cinco minutos depois de ter sido chamada, e o pequeno apartamento estava cheia de homens sérios. Ajoelhado no chão, André chorava com a cabeça de Ana ensanguentada nas mãos. Havia sangue nas roupas dele e o que parecia ser a arma do crime no chão; uma colher de sopa suja. O desespero e a confusão de André gritavam pelos olhos, ele não entendia quem podia ter feito aquilo. Por que alguém ferira Ana de maneira tão cruel?

 Os paramédicos afastaram o namorado para cuidar da mulher desmaiada no chão. André foi colocado na poltrona azul celeste à esquerda de Ana na sala de estar. A televisão ainda estava ligada e o volume baixo dificultava a audição do que o repórter dizia no jornal da noite. Algo sobre a política no país talvez. Daquela perspectiva André via claramente o rosto de sua namorada e algo curioso o intrigava; Ana parecia tranquila. Apesar do sangue, apesar da confusão estabelecida desde que ele entrara e a vira no chão; apesar de tudo, ela parecia dormir como sempre. Profundamente, sem sonhos ou pesadelos. Sem avisos, de um repente instantâneo, André vomitou ruidosamente nos sapatos do policial que o assistia. Ele vira, sem margem a qualquer dúvida, os paramédicos abrirem a mão de sua namorada e dela retirarem um globo ocular.

Um par de dias havia passado e Ana continuava no hospital, calada. Seu namorado a acompanhava cuidadosamente, porém eram nítidos o sofrimento e o incômodo dele. Ela, mesmo apenas com o olho que restara, podia vê-lo sem esforço. André murchava a seu lado. Aquilo era tão triste e Ana chorava em silêncio quando a luz estava apagada. Ela dormia pouco e ressentia em demasia a tamanho sofrimento de alguém tão gentil quanto ele. Ela se sentia mal por isso. Ana sentia-se muito incomodada com o sofrimento de André e queria vê-lo longe. O sofrimento dele era culpa dela e aquilo a corroía interna e lentamente. Queria poder mandá-lo embora. Queria estar sozinha. Pensava ela.

Até o momento nada havia sido descoberto sobre o ocorrido no pequeno apartamento e isso, mais do que a grotesca violência sem sentido, perturbava ao rapaz que buscava sempre razões para tudo. A polícia não descobrira nenhuma pista e Ana dizia não se lembrar de nada. Ela se lembrava, apenas, de chegar a casa como sempre e de estar a preparar algo para eles comerem. Depois disso, apenas lembranças vagas sobre o caminho ao hospital.

André irritara-se quando alguém sugeriu que Ana, ela própria, infligira a si mesma seus ferimentos. Aquilo era uma loucura sem sentido. Um absurdo. Ela jamais faria isso. Tudo estava bem; eles eram felizes. Ela era tranquila e divertida. Como imaginar que ela teria motivos e a coragem para arrancar seu próprio olho esquerdo? Ela não se lembrava de nada porque seu cérebro bloqueara o fato. Bloqueara o horror do que havia acontecido. Afirmava o rapaz que, para si mesmo, repetia com frouxa convicção que isso era muito mais lógico. Isso era o que havia acontecido.

Ana continuava muito mais calada do que o normal depois de voltar para casa. Não queria ver a seus amigos, não queria sair. E passava muito tempo deitada na cama a ouvir músicas antigas. André dizia a ela que tudo aquilo passaria com o tempo; que tudo voltaria a ser como antes. Porém, a menina sabia que nada mais seria como antes, apesar da pequena satisfação que agora ela sentia por ter a visão reduzida. Pois assim ela pôde amenizar um pouco a dor de ver e perceber o que não queria. A realidade para Ana tornara-se feia demais.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

A visão



A visão

Ana entrou na rua que não era mais a sua e estacionou o carro preto à esquerda do edifício no número 282, próximo à esquina. Uma árvore baixa, ainda pequena, encobria um pouco o automóvel e impedia que a motorista fosse vista da calçada. A manhã de outono estava agradável; airosa com suas cores delicadas da luz morna de um sol que ainda não despertara completamente. Ana amava as manhãs como esta, de céu azul claro quase sem nuvens, e sentia-se em paz. Quase completamente feliz.

Eram 8h de uma quarta-feira lenta e Ana pensava em tudo que teria que fazer naquele dia enquanto aguardava. Adiantara a saída de casa, não muito longe dali, com a desculpa de que tinha um compromisso de trabalho cedo pela manhã. Mentira, porém, sem remorsos, se despediu do namorado como de costume. Jantariam juntos naquela noite antes do jogo de futebol. Eram muito boas as noites caseiras de quarta-feira.

Ana gostava do namorado, até bastante, apesar de não ter planos claros e objetivos estabelecidos com ele. Moravam juntos há alguns meses e entendiam-se bem. A relação poderia durar muito, para sempre. Ela poderia também acabar no ano que logo vem e nada mudaria; as manhãs de outono continuariam agradáveis e belas para ela e a vida seguiria tranquila.

Todas as quartas essa era a rotina clandestina de Ana. Despertar um pouco mais cedo e sem preguiça, arrumar-se bem para estar bonita, inventar um motivo plausível para a tal saída-fora-de-hora, prometer um bom jantar para antes da partida de futebol e desviar-se de seu caminho usual para ficar parada por alguns minutos, meia hora, numa esquina conhecida da cidade.  Ela sabia que as mentiras não eram coisa boa; mesmo as bobas como essa. Afinal, e no final das contas, ela nada faria para além de olhar. Que mal há em olhar?

Como todos os dias, entre 8h e 8:20h da manhã o portão do edifício se abriu. De camiseta branca e larga, bermudas longas e óculos escuros ele saiu, detendo-se um pouco para uma breve conversa com o porteiro. Ana observou com atenção. Ele estava bem, parecia alegre e bem disposto. Os tênis eram novos, e ele levava seu sorriso largo e divertido; o sorriso mais bonito que seus olhos já tinham visto na vida. Ana sentia tantas saudades das palavras e da voz daquele menino; do seu menino.


João despediu-se do porteiro e seguiu à direita para a estação de Metrô caminhando sem pressa como de costume fazia. Ana observou-o até que dobrasse a esquina. Ele estava lindo; estaria sempre lindo aos olhos dela. Ligou o carro e, apesar do pesar das manhãs de quarta-feira, ela sentia-se bem. Ele estava bem e ela podia seguir tranquila por mais uma semana. À noite haveria futebol.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

A noite




A noite

O céu perdera sua cor habitual, e do azul vivo restavam apenas memórias mornas. Ana olhava a escuridão que crescia ao seu redor enquanto, na memória, resumiam-se em poucas cenas quase importantes todos os anos de sua existência. Seu mundo diminuíra aos poucos e silenciosamente, de forma que por algum tempo ela não notara tal tendência angustiante a todo claustrofóbico. Agora, porém, o vagaroso encolhimento de seus horizontes era um fato e nada poderia detê-lo. Ana aceitou-o, então, sem muito esforço.

As janelas estavam abertas e o mar calado, quieto, respirava com dificuldade em tempos sem ventos; sem movimento. O mundo de Ana, sem vontade, perdera a capacidade de mover-se. Nele tudo se resumia a uma opaca espera sem fatos ou atos onde a ela restava observar, à boa distância, a tudo; a todos. Todos, que um dia importaram à menina que ela fora, haviam partido de uma maneira ou de outra: em viagem, à força, por vontade, pela morte.

Hoje, sem curiosidades para aquilo que acontecia para além de suas terras de horizontes egoístas, Ana não ouvia ao rádio. Faltava-lhe vontade para ligar a televisão e descobrir novas guerras por motivos tão antigos quanto a humanidade. Novidades antigas, repetitivas, não lhe interessavam mais depois de tanto ter brigado na vida. Ana cansara-se de todas as lutas e resolvera que não brigaria mais, não reclamaria mais, não choraria mais. Nada mais.

Atemporal, Billie cantava seus Blues no toca discos enquanto Ana escolhia um novo livro na estante empoeirada para reler. Germinal de Zola capturou seus olhos e o ar pareceu-lhe mais palpável; pesado.  Ana sorriu. Um dia ela também havia acreditado em todas as possibilidades de um Mundo que ainda seria criado. Ela sentou-se à janela, acendeu a luz da luminária antiquada e abriu o grande livro. Etiénne e Catherine ainda respiravam em suas páginas e o mundo de Ana, tão pequeno e preguiçoso, definitivamente, parou.


domingo, 19 de março de 2017

O Espelho



O Espelho

Ana observava seu reflexo no espelho do quarto há alguns minutos naquela ensolarada manhã fria de inverno. Lá fora tudo era movimento. Um gato pardo caminhava sobre os muros verdes da casa onde algumas flores teimosas ainda resistiam agarradas às trepadeiras que cobriam o acinzentado cimento do qual o muro era feito. Um pássaro cantava na mangueira sem frutos e podiam ser adivinhados os pensamentos famintos do gato. Na rua alguns meninos brincavam com uma bola, e João escrevia no jardim.

Apenas Ana estava estática por instantes naquele dia claro e pacato que contrastava agudamente com o pavor que nela instalara-se. Naquela manhã Ana acordou e percebeu que não se reconhecia mais no espelho. Aquela mulher que a sua frente cismava não era ela. Tudo nela parecia distinto do que fora na noite anterior e, por mais que ela buscasse compreender o que via a sua frente, na verdade não o podia fazer. Quando ocorrera tal mudança? João terá notado tal transformação silenciosa? Ela pensava.

Aqueles olhos não eram os seus, como não era sua aquela boca muda e sem clara definição na porção inferior da face. O nariz crescera, os olhos diminuíram e o queixo tinha perdido o seu ar de quem tudo sabia; decidido e cheio de autoridade. Tudo naquela face parecia para Ana uma mancha indefinida que se diluía n’água enquanto ela a fitava. Aquele rosto era uma massa mal esculpida e pouco, quase nada, refletia a face que a ela pertencia.

Depois de alguns minutos paralisada, angustiada, Ana inclinou-se para limpar o espelho com a manga da blusa de seu pijama azul turquesa. Ele estava sujo. Ele deveria estar sujo. Sim, pensava ela, a sujeira causou tal deformação e enganou aos meus olhos míopes e sonolentos. Afinal, nenhuma transformação profunda como essa ocorreria da noite para o dia. Nenhuma.

Ana limpou a superfície do espelho com calma e dedicação. Lenta e suavemente, quase com carinho, ela passava o tecido que cobria seu antebraço sobre o espelho.  Certa de que aquela ação a tudo mudaria, Ana dedicava-se com atenção ao ato que traria de volta o rosto que sempre havia sido seu. O rosto que ela tão bem conhecia e que a agradava apesar de não ser mais bonito do que a maioria de todos os rostos que por ela haviam passado durante a vida. Não importava para ela a beleza ou a falta dela em seu rosto. Importava-a o fato de que nele, e apenas nele, ela era capaz de reconhecer-se.

Ana sentou-se novamente de olhos postados ao chão; quase fechados. Respirou com calma por dez vezes como fazia para baixar o ritmo do coração depois de uma corrida e olhou-se mais uma vez no espelho. João entrou no quarto e sorriu para ela com um doce bom dia dito sem aflições. Ana virou-se de costas para o espelho e sorriu.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

A Vazante


A Vazante


Parte 1

João já nasceu sério, menino velho, dono de um corpo pequeno e de uma alma há muito tempo nascida. E apesar de todas as danações e estripulias de garoto: ele corria, caçava passarinho, queimava formigas e amava a rua como a ama todo garoto; João era calado. Falava pouco, o necessário. Um quase nada de palavras saía de sua boca apenas por necessidade quando na carência de um-qualquer-coisa ou quando questionado.

Assim, com seus pensamentos em silêncio, foi crescendo o menino que não via muito sentido em gastar palavra à toa. A mãe o fitava a crescer e pensava. E o questionava sobre o dia, a escola, a rua, as meninas... João já ganhava pelos na cara, entretanto, da boca do rapaz escorregavam reticentes monossílabos, pequenas frases, econômicas manifestações de sua capacidade de comunicação com o mundo exterior. João era um rapaz calado.

Em alguns anos veio a primeira e única namorada. Pelo menos a única que chegou ao conhecimento da mãe e toda a família. Aos 19 anos João, como todos os de sua idade, trabalhava numa das inúmeras fábricas do bairro de casas pequenas e caiadas; ia ao cinema aos domingos para ver as fitas americanas, os vídeos de futebol, as notícias e, sábado à noite, namorava.


João era homem sério, de poucas palavras e pensamento reto. E desta feita, namorava a menina Ana para casar. E casar era coisa importante e cara. O menino crescido trabalhava mais para poder alugar uma casa, comprar coisas, pagar a igreja e, estava decidido, haveria festa. Ele tinha que pintar paredes, entregar convites e todo um etc. e tal sem fim. Não havia muito tempo para quase nada, muito menos para conversas ou pequenas declarações de amor. Então, João namorava calado para o estranhamento da namorada. Como o dinheiro, João economizava as palavras no peito para os dias de precisão. 

domingo, 21 de agosto de 2016

A Felicidade





A Felicidade

Todos sorriem nas fotos e à distância a felicidade é possível sem se saber o que acontece nas horas escondidas, nos fatos não narrados. João fuma seu cigarro à janela d’uma tarde úmida de domingo. Os filhos saíram para brincar com os amigos e a mulher assiste na TV a qualquer coisa que pouco, ou nada, lhe interessa. João pensa no que lhe incomoda.

O que lhe incomoda mais é o não saber bem o porquê deste sentimento cinza e úmido que, volta e meia, o acorda nas horas de silêncio. João se inunda nestes momentos sem palavras; momentos cheios de pensamentos e sentimentos de uma força incompreensível. Por quê? Ele tem tudo: duas crianças as quais ama mais do que poderia crer, uma boa companheira, um trabalho que lhe dá prazer, amigos para os copos e algum dinheiro para as coisas desimportantes da vida. Nada lhe falta; verdade. Então, por que há dentro dele esta tremenda falta de algo cujo nome próprio ele não pode definir?

Na rua passam caminhando algumas pessoas. Homens a conversar, casais de mãos dadas, crianças apressadas. A vida passa regularmente, tranquila e feliz, da janela de seu apartamento no segundo andar de um prédio antigo. Anos 50, 60 talvez. João rói as unhas das mãos e acende o segundo cigarro. O certo era parar de fumar, ele pensa. Tenho dois filhos e a saúde já não é a mesma que há vinte anos; certamente.

Uma vontade grande de sair se apresenta. Sair pelas escadas abaixo sem dizer nada a ninguém. Sair sem destino e direção. Sair. João morde o canto de seu dedo anular direito um pouco forte demais. O sangue escorre.  Que merda! Pensa ele. Isso vai doer-me amanhã. E amanhã há muito que ser feito. Decisões a tomar, números, ensaios. João se lembra de que há muito para ler, para estudar. Contudo a concentração e o foco andam um tanto turvos nos últimos dias; nos últimos meses. Difícil concentrar-se e, talvez, o melhor fosse mesmo recorrer a um médico. Deve haver drogas para isso. Deve haver uma droga qualquer para tudo isso.

João ouve a voz da filha vindo da rua. Ela e seu irmão correm na calçada com os amigos sem qualquer adulto por perto e, apenas nesse instante, ele se dá conta de quão grande está sua menina. Dez anos já! Como pode ser isso? O que foi que eu deixei para trás? João apaga o cigarro e sai da janela.


Vou descer um pouco e ver os meninos. Grita João para a sua mulher. O mundo silencioso adormece.

domingo, 24 de janeiro de 2016

João (Parte 3 - Final)



João

Parte 1
Assim que dobrou a esquina, João percebeu que havia algo de errado. Apesar de não conseguir distinguir o que lhe causava aquele estranhamento, ele sabia que alguma coisa estava fora do lugar. Mais do que um fato, um sentimento o atingiu e, por isso, ele diminui o passo na avenida cheia no centro da cidade.

Esquecera a carteira; talvez. Buscou-a na mochila cinza que ele carregava, displicente, no ombro direito. Não. Ele não tinha esquecido a carteira, nem o telefone, nem mesmo seu caderno de anotações. João gostava de escrever. Escrever era uma terapia e, papel e caneta estavam sempre à mão. Caderno azul e caneta preta.

O que era aquele sentimento então? Bobeira, pensou ele. Continuou seu caminho em direção ao trabalho na rádio e tudo lhe parecia normal. As pessoas caminhavam apressadas, os carros abarrotavam as ruas, fazia muito frio num dia cinza de inverno e a manhã passava rotineiramente. Chovera muito na noite anterior e ainda agora ele podia sentir a umidade nos ossos. Que dia gelado, pensou.

João já descia as escadas do Metrô quando ele se lembrou: Hoje é dia 27, é isso. Por onde andará a Ana? Há mais de um ano não nos falamos, e já se foram tantos anos depois daquele maio. Ana...

Um homem esbarra em João e lhe interrompe os pensamentos. João balança a cabeça jogando para fora as tais bobeiras e continua seu caminho. O dia será cheio e ele não acha qualquer razão para se lembrar de Ana. Esta é uma estória que já acabou há algum tempo; há um bom tempo. A vida é outra e há outras coisas a fazer, outras pessoas.

O trem chega à estação, lotado, e João suspira resignado. Não há o que fazer, ele precisa estar na rádio em meia hora. O homem se espreme entre tantas pessoas num pequeno espaço, encostado ao lado da porta no final do último vagão. A porta se fecha e o trem sai.

João olha distraído para frente e seus olhos se impressionam. Alguns metros à frente, sentada num banco a ler, está Ana. Os cabelos mais curtos, ela está menos magra, talvez; com um vestido de inverno que João nunca havia visto. Ana...



Parte 2
Ana significara tanto e tinha sido tão pouco no final de todas as contas. Mais sonho e desejo do que realidade, mais o querer de João do que alguém a quem ele queria realmente; profundamente. Ana tinha sido canções melosas em excesso; noites mal dormidas à espera de sinais de que ela ainda estava ali, com ele. Ela era ter o coração acelerado muito para além do costumeiro num descompasso que o incomodava. João já não tinha certeza se amara Ana tão verdadeiramente ou se ela era apenas o seu desejo de que a vida fosse mais do que o cotidiano. Sua necessidade do poético e do fantástico.

A rotina agora era mais tranquila e melhor, a vida mais segura e sensata tão cheia de sentido comum. Pensou o rapaz. Sim, a vida estava melhor para ele. Não havia mais os disparates daquele amor sublime, de um sentimento maior e inexplicável, da paixão. Para que serviam as paixões afinal; para nada. Apenas para que nós percamos a razão e não controlemos mais o que sentimos e o que pensamos. Pensamento fica turvado com tanta emoção, a voz embarga e os olhos enchem d’água. “Para quê?” Resmungou, para si mesmo, o João escondendo seu rosto atrás de outros rostos para não poder ser visto por ela.

Melhor assim. Melhor o amor tranquilo que não nos ameaça e que quando acaba não deixa grandes marcas. Aquele que como começou termina; aquele que simplesmente passa. Agora João era dono de sua vida e de seu nariz sem assombros. Agora ele tinha uma vida tranquila e era isso que ele queria: a tranquilidade dos dias organizados, padronizados e dentro do seu controle total.

João se escondeu porque sabia que era aquilo que ele deveria fazer; o que qualquer um de bom senso faria. Ele estava bem. Bem, mas incomodado com algo, João permaneceu escondido das vistas do mundo no final do vagão do metrô por algumas estações. Ele não compreendia muito bem o que o incomodava tanto. O medo de falar com Ana talvez. Talvez esse seja o mesmo medo que o congelou tantas e tantas vezes, aquilo que o impediu de arriscar-se e dizer, sem censura, tudo o que se passava dentro dele. Sentir demais o assustava. A vida não era assim e na verdade todos nós sabemos que estes amores eternos e estes sentimentos rasgados acontecem apenas nos filmes e nos livros baratos. Um homem e uma mulher não ficarão jamais juntos para sempre por amor. Para isso existem contratos firmados ou não em cartório, mas ainda assim contratos. Acordos para um bom viver pacato.

Ana fechou seu livro e saiu do metrô, a duas estações do destino do rapaz, sem se aperceber que João estava no fundo do vagão. Ela estava linda. Pensou João. Continuava linda aos olhos dele como sempre. Ana era perfeita demais para ele, era tudo o que ele sempre quis e, como tudo que é perfeito demais, ela não podia ser real. Ana era uma farsa.

Alguns minutos depois, mudo e tão frio como o dia, João saiu do fundo do vagão do metrô e ganhou a rua. O dia estava cinza e voltara a chover, caia aquela chuva fina e gelada dos dias de inverno que parecem não ter fim. João acendeu um cigarro para espantar todo o frio e apertou o passo para o trabalho como se o tempo fosse urgente demais. João fumava a sufocar, como tantas vezes antes, as suas lágrimas. João caminhava.


Parte 3 (final)
 Ana vira João distraído entrar no vagão a ouvir sua música; preocupado com suas coisas. Nesses meses todos, esta não era a primeira vez que o via no metrô. Eles viviam no mesmo bairro paulistano e os encontros inesperados e indesejados acabavam por acontecer, e Ana não sabia muito bem o que sentir nestes momentos. Ela sentia vontade de correr em direção a ele e abraçá-lo. De dizer que tudo estava errado como estava; que assim não podia ser. Ela queria mostrar-lhe que o Mundo tinha virado de ponta cabeça desde o dia em que disseram um ao outro adeus.

Ana gostava de vê-lo nas manhãs no metrô como quem via um antigo e amado filme porque naqueles poucos e parvos instantes as saudades dela arrefeciam-se um pouco. Ana o amava, sem compreender o porquê daquilo. Contudo, ela sentia e sabia que não falaria mais com ele, e sempre se escondia atrás de seus livros e revistas, atrás de ombros que ela não conhecia, quando o via entrar.

Ela sabia que não havia motivos para falar com João; nem sequer para tentar qualquer mínimo e descuidado diálogo. Ela tinha medo de suas palavras tanto quanto de seu silêncio indiferente, pois, estava certa de que aquele sentimento, que ainda inundava veias e artérias, existia e persistia somente nela. Ana sentia-se uma personagem na Quadrilha de Drummond com sua ciranda onde as mãos perdem-se no vazio... A vida era mesmo uma sucessão de encontros ao acaso e desencontros propositais.

Ana levantou-se e saiu do vagão do metrô para respirar o ar frio da rua alguns instantes antes do choro. Ela não podia chorar ali porque, então, ele a veria e... E se ele a visse, e se ela se soubesse vista, todas as suas ilusões e suas esperanças cegas teriam que ser mortas. Sim, elas morreriam assassinadas pela indiferença num vagão lotado do metrô e, certamente, Ana não saberia mais como seguir em frente. Ela não sabia viver sem seus sonhos, crenças e fantasias e João... João era a sua fantasia mais verdadeira.

Com seus óculos escuros e olhos inundados, Ana não conseguia segurar o choro. Ana caminhava.


Quadrilha
Carlos Drummond de Andrade
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

João (parte 2)


João

Parte 1
Assim que dobrou a esquina, João percebeu que havia algo de errado. Apesar de não conseguir distinguir o que lhe causava aquele estranhamento, ele sabia que alguma coisa estava fora do lugar. Mais do que um fato, um sentimento o atingiu e, por isso, ele diminui o passo na avenida cheia no centro da cidade.
Esquecera a carteira; talvez. Buscou-a na mochila cinza que ele carregava, displicente, no ombro direito. Não. Ele não tinha esquecido a carteira, nem o telefone, nem mesmo seu caderno de anotações. João gostava de escrever. Escrever era uma terapia e, papel e caneta estavam sempre à mão. Caderno azul e caneta preta.
O que era aquele sentimento então? Bobeira, pensou ele. Continuou seu caminho em direção ao trabalho na rádio e tudo lhe parecia normal. As pessoas caminhavam apressadas, os carros abarrotavam as ruas, fazia muito frio num dia cinza de inverno e a manhã passava rotineiramente. Chovera muito na noite anterior e ainda agora ele podia sentir a umidade nos ossos. Que dia gelado, pensou.
João já descia as escadas do Metrô quando ele se lembrou: Hoje é dia 27, é isso. Por onde andará a Ana? Há mais de um ano não nos falamos, e já se foram tantos anos depois daquele maio. Ana...
Um homem esbarra em João e lhe interrompe os pensamentos. João balança a cabeça jogando para fora as tais bobeiras e continua seu caminho. O dia será cheio e ele não acha qualquer razão para se lembrar de Ana. Esta é uma estória que já acabou há algum tempo; há um bom tempo. A vida é outra e há outras coisas a fazer, outras pessoas.
O trem chega à estação, lotado, e João suspira resignado. Não há o que fazer, ele precisa estar na rádio em meia hora. O homem se espreme entre tantas pessoas num pequeno espaço, encostado ao lado da porta no final do último vagão. A porta se fecha e o trem sai.
João olha distraído para frente e seus olhos se impressionam. Alguns metros à frente, sentada num banco a ler, está Ana. Os cabelos mais curtos, ela está menos magra, talvez; com um vestido de inverno que João nunca havia visto. Ana...



Parte 2
Ana significara tanto e tinha sido tão pouco no final de todas as contas. Mais sonho e desejo do que realidade, mais o querer de João do que alguém a quem ele queria realmente; profundamente. Ana tinha sido canções melosas em excesso; noites mal dormidas à espera de sinais de que ela ainda estava ali, com ele; ela era ter o coração acelerado muito para além do costumeiro num descompasso que o incomodava. João já não tinha certeza se amara Ana tão verdadeiramente ou se ela era apenas o seu desejo de que a vida fosse mais do que o cotidiano. Sua necessidade do poético e do fantástico.
A rotina agora era mais tranquila e melhor, a vida mais segura e sensata tão cheia de sentido comum. Pensou o rapaz. Sim, a vida estava melhor para ele. Não havia mais os disparates daquele amor sublime, de um sentimento maior e inexplicável, da paixão. Para que serviam as paixões afinal; para nada. Apenas para que a gente perca a razão e não controle mais o que sente e o que pensa. Pensamento fica turvado com tanta emoção, a voz embarga e os olhos enchem d’água. “Para quê?” Resmungou, para si mesmo, o João escondendo seu rosto atrás de outros rostos para não poder ser visto por ela.
Melhor assim. Melhor o amor tranquilo que não nos ameaça e que quando acaba não deixa grandes marcas. Aquele que como começou termina; aquele que simplesmente passa. Agora João era dono de sua vida e de seu nariz sem assombros. Agora ele tinha uma vida tranquila e era isso que ele queria: a tranquilidade dos dias organizados, padronizados e dentro do seu controle total.
João se escondeu porque sabia que era aquilo que ele deveria fazer; o que qualquer um de bom senso faria. Ele estava bem. Bem, mas incomodado com algo, João permaneceu escondido das vistas do mundo no final do vagão do metrô por algumas estações. Ele não compreendia muito bem o que o incomodava tanto. O medo de falar com Ana talvez. Talvez esse seja o mesmo medo que o congelou tantas e tantas vezes, aquilo que o impediu de arriscar-se e dizer, sem censura, tudo o que se passava dentro dele. Sentir demais o assustava. A vida não era assim e na verdade todos nós sabemos que estes amores eternos, que estes sentimentos rasgados acontecem apenas nos filmes e em livros baratos. Um homem e uma mulher não ficarão jamais juntos para sempre por amor. Para isso existem contratos firmados ou não em cartório, mas ainda assim contratos. Acordos para um bom viver pacato.
Ana fechou seu livro e saiu do metrô, a duas estações do destino do rapaz, sem se aperceber que João estava no fundo do vagão. Ela estava linda. Pensou João. Continuava linda aos olhos dele como sempre. Ana era perfeita demais para ele, era tudo o que ele sempre quis e, como tudo que é perfeito demais, ela não podia ser real. Ana era uma farsa.
Alguns minutos depois, mudo e tão frio como o dia, João saiu do fundo do vagão do metrô e ganhou a rua. O dia estava cinza e voltara a chover, caia aquela chuva fina e gelada dos dias de inverno que parecem não ter fim. João acendeu um cigarro para espantar todo o frio e apertou o passo para o trabalho como se o tempo fosse urgente demais. João fumava a sufocar, como tantas vezes antes, as suas lágrimas. João caminhava.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

João (parte 1)



João

Assim que dobrou a esquina, João percebeu que havia algo de errado. Apesar de não conseguir distinguir o que lhe causava aquele estranhamento, ele sabia que alguma coisa estava fora do lugar. Mais do que um fato, um sentimento o atingiu e, por isso, ele diminui o passo na avenida abafada no centro da cidade.

Esquecera a carteira, talvez. Buscou-a na mochila cinza que ele carregava, displicente, no ombro direito. Não. Ele não tinha esquecido a carteira, nem o telefone, nem mesmo seu caderno de anotações. João gostava de escrever. Escrever era uma terapia e, papel e caneta estavam sempre à mão. Caderno azul e caneta preta.

O que era aquele sentimento então? Bobeira, pensou. Continuou seu caminho em direção do trabalho na rádio e tudo lhe parecia normal. As pessoas caminhavam apressadas, os carros abarrotavam as ruas, fazia muito frio num dia cinza de inverno e a manhã passava rotineiramente. Chovera muito na noite anterior e ainda agora ele podia sentir a umidade nos ossos. Que dia gelado, pensou.

João já descia as escadas do Metrô quando ele se lembrou: Hoje é dia 27, é isso. Por onde andará a Ana? Há mais de um ano não nos falamos, e já se foram tantos anos depois daquele maio. Ana...
Um homem esbarra em João e lhe interrompe os pensamentos. João balança a cabeça jogando para fora as tais bobeiras e continua seu caminho. O dia será cheio e ele não acha qualquer razão para se lembrar da Ana. Esta é uma estória que já acabou há algum tempo; há um bom tempo. A vida é outra e há outras coisas a fazer, outras pessoas.

O trem chega à estação, lotado, e João suspira resignado. Não há o que fazer, ele precisa estar na rádio em meia hora. O homem se espreme entre tantas pessoas num pequeno espaço, encostado ao lado da porta no final do último vagão. A porta se fecha e o trem sai.


João olha distraído para frente e seus olhos se impressionam. Alguns metros à frente, sentada num banco a ler, está Ana. Os cabelos mais curtos, ela está menos magra, talvez; com um vestido de inverno que João nunca havia visto. Ana...

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Ana (parte 5)



Parte 1
Ana percebeu-se. Suave e indefinida, apenas uma leve consciência do existir respirava. A menina sabia-se viva, porém não passava de fina consciência todo o saber que a ela lhe cabia. Ana... Ana era a única coisa que dela restara; toda sua identidade. Sua consciência resumia-se a três letras – Ana. Com os olhos fechados, pregados pelo medo do que pudessem ver, de tudo o que não poderiam compreender. A mulher jazia numa cama. Braços inertes, pernas inertes. Por algum motivo que ela desconhecia havia o medo do mover-se. Mover-se doeria? E se sua pele abrisse pelo esforço; pelo desejo agudo dos ossos de rompê-la para fugir dali. Para fugir de um corpo que a eles não pertencia, um corpo do qual a dona não tinha memória e que, mais que ela mesma, lhe parecia um peso; um estorvo.
Passaram-se minutos, dezenas arrastadas deles. Horas de caminhar lento passaram antes que Ana abrisse os olhos castanhos e opacos no exato instante em que a curiosidade tão natural da alma humana venceu o medo. Os olhos viram o branco corpo que não reconheciam, mas que a eles pertencia. Um vestido branco e leve de delicadas flores amarelas e pálidas cobria-lhe o ventre, parte das pernas; a metade das coxas. Os olhos desceram pelas coxas, a canela... A unha do dedo maior do pé esquerdo sumira. O dedo latejava, ou ela imaginava-o a latejar porque é exatamente isso que se espera de um dedo cuja unha foi arrancada. Arrancaram-na? Quando? Por quê?...
Os porquês reproduziam-se em ecos doloridos, magoados. Os porquês provocaram lágrimas silenciosas e órfãs. Ana não se reconhecia, e sentia-se dona de uma solidão tão ampla quanto podia ser a solidão de quem não se sabe. O choro ganhou ânimo para afogar os olhos da menina que os tornou a fechar. Ana queria esquecer-se completamente.

Parte 2
Pela janela, através de exaustas venezianas de madeira azul clara, entrava delicada luz que tocava o braço direito de Ana. O choro cessara há algum tempo, talvez ela tivesse adormecido mais uma vez; talvez. Não se lembrava desta luz a tocar sua pele assim como não se lembrava de sua vida, de seu nome completo, de onde estava, de qual era o dia, mês ou ano. Desta maneira, tão sem lembranças e apenas certa daquilo que não sabia, Ana duvidava até mesmo de sua própria existência.
“Estou mesmo viva?” pensava a menina estática que jazia na cama. “Estou mesmo viva e respiro ou apenas imagino este respirar?”
Ana lembrou-se da falta da unha em seu pé esquerdo e reabriu seus olhos. Era verdade, faltava-lhe uma unha e havia um pequeno bocado enegrecido de sangue que saíra do dedo e escorrera pelo peito do pé. O dedo lhe doía e, portanto, ela estava viva; concluiu Ana. Tudo que não está vivo não sente dor, não sente nada. E a dor do dedo do pé esquerdo era, naquele momento, um conforto para aquela mulher que não sabia quem era ela e nem onde estava. Havia uma certeza; quiçá a única que qualquer ser humano podia ter nesta vida: Ana sabia-se viva. E sua certeza era concreta porque seu dedo doía.
Por que havia tanto medo nela? Medo de mover-se, medo de ouvir algo, medo de ver algo para além do vestido florido e da unha ausente. As paredes do quarto eram brancas e nuas como se tivessem sido recém pintadas e contrastavam com as cansadas venezianas de azul sem vida. Não havia quadros, não havia manchas, não havia nem ao menos um único prego ou gancho que maculasse aquele branco completo e sufocante.
“Onde estou?” pensava a atordoada mente da moça que jazia numa cama barata de metal cinza claro.
Ana abriu a boca, pois percebera os secos lábios rachados e sentiu a urgente necessidade de umedecê-los para que a fina pele não se rompesse. A língua de Ana tocou lhe os lábios e percebeu um pequeno corte à direita através do sal do sangue que lhe invadiu o paladar.
“Onde estou, meu Deus?” pensou a menina que não ousava falar por medo de que alguém a ouvisse.
Voltaram as lágrimas ao rosto de Ana.

Parte 3
Ana tentou acalmar-se, conter o pranto; pensar. Pensar o quê? Não sabia. Sabia apenas que jazia na cama com medo, que lhe faltava uma unha, que a boca estava ferida e que emagrecera. Emagrecera? Como podia ser dona desta impressão se não se lembrava de nada? Mais que um fato, aquela era uma sensação. Ana sentia que tinha sido maior, que havia alguma carne no corpo que agora parecia seco. Ela estava seca. “Como alguém seco chora?”, pensou.
Então, a menina chorou sem lágrimas sentindo a mágoa a invadir-lhe, a dor a abraçá-la. Havia tanto silêncio e solidão. Tanto silêncio que parecia que o mundo deixara de existir.
“O que existe por detrás da janela azul?”, perguntou-se. “O quê?”
Por alguns instantes a mulher de vestido florido e gasto tentou ouvir o mundo afiando os ouvidos. Nada. Ana não entendia como podia haver tanto silêncio e lembrou-se da mãe. De uma mãe sem rosto definido e que era sua mãe porque a chamava de filha. Ela quase podia ouvir-la naquele instante e ela, como toda gente, devia ter uma mãe. Onde estava a sua mãe que não estava aqui ao seu lado? Todas as mães ficam ao lado de seus filhos nos momentos difíceis, e aquele era um momento difícil. Muito difícil.
“Qual o nome de minha mãe?”
“Pareço-me com ela?”
“Está viva?”
“Por que não está aqui agora?”
Eram tantas as perguntas que atormentavam sua cabeça que Ana sentiu-se irritada; com raiva. E num impulso sem qualquer medo ou pensamento, sentou-se na cama. Seus olhos arregalaram-se, o coração acelerou, o medo cresceu. E pela primeira vez Ana ouviu sua própria voz baixa, rouca e pouca.
“Mãe?”
Não havia nenhuma dor para além da dor do dedo do pé esquerdo. Ana estava um pouco zonza pelo levantar-se de repente, mas não havia dor. Ela olhou para a janela e sentiu que o medo diminuía. Ela tinha que olhar pelas frestas. Talvez pudesse abri-la e ver. Talvez.
O chão estava fresco, não frio. A suave temperatura do solo de um revestimento bege a reconfortou porque com ele veio a idéia de que o dia deveria estar bonito lá fora. O chão estava quase morno; era verão com certeza, porque apenas no verão o chão fica agradável daquele jeito dentro das casas. Ana amava o verão e seu sol cheio de força e vida. Amava os dias longos e as pessoas com roupas leves a passear pelas ruas. No verão havia mais gente na rua e ela adorava este tempo de vestidos levianos, coloridos, suaves e pequenos.
Ana tentou levantar-se da cama, pois queria ver o verão pelas frestas da janela. E ela imaginava uma bela tarde ensolarada a julgar pela luz que entrava pelas frestas, imaginava pessoas nas ruas, e imaginava que alguém dentre todos que passeavam pela rua poderia explicar-lhe onde ela estava. Ana imaginava algo bonito quando uma dor infinita invadiu-a. Os ossos da perna esquerda pareciam ruir-se por dentro, e a dor cortou-a sem piedade ou compaixão.
A mulher vestida de verão sentou-se novamente e, assustada, fitava a perna que latejava tremendamente e parecia querer desmanchar-se em pedaços pequenos.
Ana deitou-se, fechou os olhos. Sem forças, sem lágrimas, ela queria esquecer-se de si mesma mais uma vez.

Parte 4
Era noite quando Ana despertou lembrando-se da dor na perna. Apalpou-a com as mãos e sentiu um pequeno oco coberto de pele e uma cicatriz na coxa. “Houve um acidente?”, pensou. Depois de alguns minutos a pensar, a tentar se lembrar de tudo ou de qualquer coisa, Ana decidiu-se levantar mais uma vez. Agora com cuidado; com delicado cuidado com sua perna e apoiando-se nos móveis e na parede, Ana caminhou até a janela azul que agora se mostrava cinzenta.
 Garoava. A menina podia ver pelas frestas da veneziana as finas gotas de chuva e o reflexo da luz no asfalto úmido. Havia uma grande árvore sem frutos defronte de sua janela e um carro, de cor escura e indefinida, estacionado diante de um portão de ferro branco. A rua era estreita e não havia ninguém a caminhar por ela. Era apenas uma pequena rua lateral sem grande importância; sem pés caminhando por ela.
Não adiantava gritar, e Ana ficou calada e parada à janela por minutos a esperar que alguém aparecesse. Como naqueles momentos nos quais não queremos crer que já não temos mais à quem amamos conosco e esperamos. Esperamos que a pessoa pense melhor e retorne, que os olhos dentro do caixão milagrosamente nos olhem; que o tempo volte. Ana esperou até que a dor de sua perna venceu-a, e ela, derrotada, resignou-se a voltar ao seu lugar neste mundo. Ana deitou-se na cama de metal cinza e deixou-se estar como quem não chega a existir de verdade; como uma sombra.
 Ana não se lembrava de ter comido ou bebido algo. Deveria sentir fome e sede. Onde estava a sua sede se lhe faltava tanta água que seus lábios haviam rachado? Uma pessoa não pode não sentir sede se até a saliva lhe faltava. Os pensamentos tortos de Ana a sufocavam num emaranhado de fios de uma teia espessa. “Eu tenho que ter sede. Eu tenho que sentir sede como toda gente sente sede.”, pensou a mulher assusta.
“ÁGUA!”.  Gritava Ana desesperada. ÁGUA, ÁGUA; água... ahhhhhhhhhhhhhhhh.
Sentada na cama, de pernas estiradas. Ana gritou até não conseguir emitir mais qualquer som. Até que as palavras se tornaram indecifráveis urros de confusão e dor. A mulher do vestido florido não queria estar ali; ela não queria mais existir.

Parte 5
Amanhecera. Ana abriu seus olhos embaçados pelo sono e notou a pequena borboleta amarela a voar pela sala.  De onde viera? Como era lindo ver algo com vida acercar-se depois de tanta solidão. Mesmo que fosse uma vida silenciosa como é a vida das borboletas. Vida leve e colorida. Breve.
O dia estava bonito e a menina podia ver o céu azul pela janela aberta. A janela estava aberta. Apenas um vidro separava Ana do mundo lá fora, pois alguém abrira as venezianas e deixara entrar a pequena borboleta. Por quê?
Um incômodo medo do que não se espera, da mudança, fez com que Ana ficasse quieta. Ela deveria correr, deveria tentar abrir a janela, deveria pedir por socorro, deveria... “Eu deveria saber quem eu sou.”, pensou a jovem mulher. O não saber congelou-a. Melhor do que nada era ter a borboleta a voar pelo quarto e isso a deixou imóvel. Imóvel a esperar que a borboleta se achegasse mais, a esperar que ela pousasse bem perto; sobre ela.

Alheio a qualquer perturbação, o inseto simplesmente voava curioso pelo quarto. O vôo distraiu Ana que, por alguns minutos, deixou tudo de lado: o medo, a dúvida, a dor; e apenas admirou as suaves asas.  Havia apenas a borboleta amarela a voar pela sala d’algum lugar desconhecido. E aquilo era bom, era tão bom que fez Ana sorrir. Então, Ana lembrou-se: a janela estava aberta; pelo menos sua veneziana estava aberta. A menina levantou-se com cautela e caminhou até a janela de onde se via um lindo céu azul de outono. 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Mudo



Pela primeira vez em anos, muitos anos, todos os anos, fez-se o silêncio. Completo e vazio; inodoro. Pela primeira vez em sua vida não havia música, ela desligara o rádio e ouvia o ruído do motor do carro. Uma bicicleta passou no chão úmido. Silenciosa e quase transparente uma pequena aranha passeava por um mundo que parara de girar aos olhos de Ana. Os olhos seguiam a pequena aranha pelo painel do carro, por detrás do volante. Ana não se mexia, apenas a pequena aracnídea o fazia.

Ela era muito pequena e branca, insignificante. Porém parecia mais importante do que qualquer coisa naquele instante e Ana invejou-a. Invejou sua inconsciência e sua vida simples e completa em si mesma. A cabeça lhe doía e pesava como se fosse o crânio de um elefante, e ela apenas conseguia pensar que sentia uma inveja piegas da aranha.

O Mundo inteiro estava tão imensamente vazio e confuso naquele silêncio. Ele havia se quebrado, quando a pequena mulher compreendeu que todos seus desejos, seus sonhos e seus planos não passavam de belas alucinações. Ana compreendera, claramente, que estava louca; ela era louca. Louca destas loucuras silenciosas e inofensivas, mas percebia-se louca. Ana acreditara no que não existia, e mesmo depois de ter tido a comprovação cabal de que nada havia sido verdadeiro, mesmo neste momento, ela acreditava no que jamais existira. Estava definitivamente louca.

A aranha continuava a passear, e o semáforo já mudara sua cor algumas vezes. Àquela hora não havia carros na rua; apenas Ana, a aranha e uma esporádica bicicleta que já se fora há vários minutos atrás. O reino do silêncio imperava num mundo onde não se podia mais fazer música, o mundo de Ana tornara-se mudo.