O Espelho
Ana observava seu reflexo no
espelho do quarto há alguns minutos naquela ensolarada manhã fria de inverno. Lá
fora tudo era movimento. Um gato pardo caminhava sobre os muros verdes da casa
onde algumas flores teimosas ainda resistiam agarradas às trepadeiras que
cobriam o acinzentado cimento do qual o muro era feito. Um pássaro cantava na
mangueira sem frutos e podiam ser adivinhados os pensamentos famintos do gato. Na
rua alguns meninos brincavam com uma bola, e João escrevia no jardim.
Apenas Ana estava estática por
instantes naquele dia claro e pacato que contrastava agudamente com o pavor que
nela instalara-se. Naquela manhã Ana acordou e percebeu que não se reconhecia
mais no espelho. Aquela mulher que a sua frente cismava não era ela. Tudo nela parecia
distinto do que fora na noite anterior e, por mais que ela buscasse compreender
o que via a sua frente, na verdade não o podia fazer. Quando ocorrera tal
mudança? João terá notado tal transformação silenciosa? Ela pensava.
Aqueles olhos não eram os seus,
como não era sua aquela boca muda e sem clara definição na porção inferior da
face. O nariz crescera, os olhos diminuíram e o queixo tinha perdido o seu ar
de quem tudo sabia; decidido e cheio de autoridade. Tudo naquela face parecia
para Ana uma mancha indefinida que se diluía n’água enquanto ela a fitava. Aquele
rosto era uma massa mal esculpida e pouco, quase nada, refletia a face que a
ela pertencia.
Depois de alguns minutos
paralisada, angustiada, Ana inclinou-se para limpar o espelho com a manga da
blusa de seu pijama azul turquesa. Ele estava sujo. Ele deveria estar sujo. Sim,
pensava ela, a sujeira causou tal deformação e enganou aos meus olhos míopes e sonolentos.
Afinal, nenhuma transformação profunda como essa ocorreria da noite para o dia.
Nenhuma.
Ana limpou a superfície do
espelho com calma e dedicação. Lenta e suavemente, quase com carinho, ela
passava o tecido que cobria seu antebraço sobre o espelho. Certa de que aquela ação a tudo mudaria, Ana
dedicava-se com atenção ao ato que traria de volta o rosto que sempre havia
sido seu. O rosto que ela tão bem conhecia e que a agradava apesar de não ser
mais bonito do que a maioria de todos os rostos que por ela haviam passado durante
a vida. Não importava para ela a beleza ou a falta dela em seu rosto. Importava-a
o fato de que nele, e apenas nele, ela era capaz de reconhecer-se.
Ana sentou-se novamente de olhos
postados ao chão; quase fechados. Respirou com calma por dez vezes como fazia
para baixar o ritmo do coração depois de uma corrida e olhou-se mais uma vez no
espelho. João entrou no quarto e sorriu para ela com um doce bom dia dito sem
aflições. Ana virou-se de costas para o espelho e sorriu.
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