João
Parte 1
Assim que dobrou
a esquina, João percebeu que havia algo de errado. Apesar de não conseguir
distinguir o que lhe causava aquele estranhamento, ele sabia que alguma coisa
estava fora do lugar. Mais do que um fato, um sentimento o atingiu e, por isso,
ele diminui o passo na avenida cheia no centro da cidade.
Esquecera a
carteira; talvez. Buscou-a na mochila cinza que ele carregava, displicente, no
ombro direito. Não. Ele não tinha esquecido a carteira, nem o telefone, nem
mesmo seu caderno de anotações. João gostava de escrever. Escrever era uma
terapia e, papel e caneta estavam sempre à mão. Caderno azul e caneta preta.
O que era aquele
sentimento então? Bobeira, pensou ele.
Continuou seu caminho em direção ao trabalho na rádio e tudo lhe parecia
normal. As pessoas caminhavam apressadas, os carros abarrotavam as ruas, fazia
muito frio num dia cinza de inverno e a manhã passava rotineiramente. Chovera
muito na noite anterior e ainda agora ele podia sentir a umidade nos ossos. Que
dia gelado, pensou.
João já descia
as escadas do Metrô quando ele se lembrou: Hoje
é dia 27, é isso. Por onde andará a Ana? Há mais de um ano não nos falamos, e
já se foram tantos anos depois daquele maio. Ana...
Um homem esbarra
em João e lhe interrompe os pensamentos. João balança a cabeça jogando para
fora as tais bobeiras e continua seu caminho. O dia será cheio e ele não acha qualquer
razão para se lembrar de Ana. Esta é uma estória que já acabou há algum tempo;
há um bom tempo. A vida é outra e há outras coisas a fazer, outras pessoas.
O trem chega à
estação, lotado, e João suspira resignado. Não há o que fazer, ele precisa
estar na rádio em meia hora. O homem se espreme entre tantas pessoas num
pequeno espaço, encostado ao lado da porta no final do último vagão. A porta se
fecha e o trem sai.
João olha
distraído para frente e seus olhos se impressionam. Alguns metros à frente,
sentada num banco a ler, está Ana. Os cabelos mais curtos, ela está menos magra,
talvez; com um vestido de inverno que João nunca havia visto. Ana...
Parte 2
Ana significara
tanto e tinha sido tão pouco no final de todas as contas. Mais sonho e desejo
do que realidade, mais o querer de João do que alguém a quem ele queria
realmente; profundamente. Ana tinha sido canções melosas em excesso; noites mal
dormidas à espera de sinais de que ela ainda estava ali, com ele; ela era ter o
coração acelerado muito para além do costumeiro num descompasso que o
incomodava. João já não tinha certeza se amara Ana tão verdadeiramente ou se
ela era apenas o seu desejo de que a vida fosse mais do que o cotidiano. Sua necessidade
do poético e do fantástico.
A rotina agora era mais tranquila e melhor,
a vida mais segura e sensata tão cheia de sentido comum. Pensou o rapaz. Sim,
a vida estava melhor para ele. Não havia mais os disparates daquele amor
sublime, de um sentimento maior e inexplicável, da paixão. Para que serviam as
paixões afinal; para nada. Apenas para que a gente perca a razão e não controle
mais o que sente e o que pensa. Pensamento fica turvado com tanta emoção, a voz
embarga e os olhos enchem d’água. “Para quê?”
Resmungou, para si mesmo, o João escondendo seu rosto atrás de outros rostos
para não poder ser visto por ela.
Melhor assim. Melhor
o amor tranquilo que não nos ameaça e que quando acaba não deixa grandes marcas.
Aquele que como começou termina; aquele que simplesmente passa. Agora João era
dono de sua vida e de seu nariz sem assombros. Agora ele tinha uma vida
tranquila e era isso que ele queria: a tranquilidade dos dias organizados,
padronizados e dentro do seu controle total.
João se escondeu
porque sabia que era aquilo que ele deveria fazer; o que qualquer um de bom senso
faria. Ele estava bem. Bem, mas incomodado com algo, João permaneceu escondido
das vistas do mundo no final do vagão do metrô por algumas estações. Ele não compreendia
muito bem o que o incomodava tanto. O medo de falar com Ana talvez. Talvez esse
seja o mesmo medo que o congelou tantas e tantas vezes, aquilo que o impediu de
arriscar-se e dizer, sem censura, tudo o que se passava dentro dele. Sentir demais
o assustava. A vida não era assim e na verdade todos nós sabemos que estes
amores eternos, que estes sentimentos rasgados acontecem apenas nos filmes e em
livros baratos. Um homem e uma mulher não ficarão jamais juntos para sempre por
amor. Para isso existem contratos firmados ou não em cartório, mas ainda assim
contratos. Acordos para um bom viver pacato.
Ana fechou seu
livro e saiu do metrô, a duas estações do destino do rapaz, sem se aperceber que
João estava no fundo do vagão. Ela estava
linda. Pensou João. Continuava linda aos olhos dele como sempre. Ana era
perfeita demais para ele, era tudo o que ele sempre quis e, como tudo que é
perfeito demais, ela não podia ser real. Ana era uma farsa.
Alguns minutos
depois, mudo e tão frio como o dia, João saiu do fundo do vagão do metrô e
ganhou a rua. O dia estava cinza e voltara a chover, caia aquela chuva fina e
gelada dos dias de inverno que parecem não ter fim. João acendeu um cigarro para
espantar todo o frio e apertou o passo para o trabalho como se o tempo fosse
urgente demais. João fumava a sufocar, como tantas vezes antes, as suas
lágrimas. João caminhava.
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