A visão
A polícia chegara não mais de
cinco minutos depois de ter sido chamada, e o pequeno apartamento estava cheia
de homens sérios. Ajoelhado no chão, André chorava com a cabeça de Ana ensanguentada
nas mãos. Havia sangue nas roupas dele e o que parecia ser a arma do crime no
chão; uma colher de sopa suja. O desespero e a confusão de André gritavam pelos
olhos, ele não entendia quem podia ter feito aquilo. Por que alguém ferira Ana
de maneira tão cruel?
Os paramédicos afastaram o namorado para cuidar
da mulher desmaiada no chão. André foi colocado na poltrona azul celeste à
esquerda de Ana na sala de estar. A televisão ainda estava ligada e o volume
baixo dificultava a audição do que o repórter dizia no jornal da noite. Algo
sobre a política no país talvez. Daquela perspectiva André via claramente o
rosto de sua namorada e algo curioso o intrigava; Ana parecia tranquila. Apesar
do sangue, apesar da confusão estabelecida desde que ele entrara e a vira no
chão; apesar de tudo, ela parecia dormir como sempre. Profundamente, sem sonhos
ou pesadelos. Sem avisos, de um repente instantâneo, André vomitou ruidosamente
nos sapatos do policial que o assistia. Ele vira, sem margem a qualquer dúvida,
os paramédicos abrirem a mão de sua namorada e dela retirarem um globo ocular.
Um par de dias havia passado e
Ana continuava no hospital, calada. Seu namorado a acompanhava cuidadosamente,
porém eram nítidos o sofrimento e o incômodo dele. Ela, mesmo apenas com o olho
que restara, podia vê-lo sem esforço. André murchava a seu lado. Aquilo era tão
triste e Ana chorava em silêncio quando a luz estava apagada. Ela dormia pouco
e ressentia em demasia a tamanho sofrimento de alguém tão gentil quanto ele. Ela
se sentia mal por isso. Ana sentia-se muito incomodada com o sofrimento de
André e queria vê-lo longe. O sofrimento dele era culpa dela e aquilo a corroía
interna e lentamente. Queria poder mandá-lo embora. Queria estar sozinha. Pensava
ela.
Até o momento nada havia sido
descoberto sobre o ocorrido no pequeno apartamento e isso, mais do que a
grotesca violência sem sentido, perturbava ao rapaz que buscava sempre razões
para tudo. A polícia não descobrira nenhuma pista e Ana dizia não se lembrar de
nada. Ela se lembrava, apenas, de chegar a casa como sempre e de estar a
preparar algo para eles comerem. Depois disso, apenas lembranças vagas sobre o
caminho ao hospital.
André irritara-se quando alguém
sugeriu que Ana, ela própria, infligira a si mesma seus ferimentos. Aquilo era
uma loucura sem sentido. Um absurdo. Ela jamais faria isso. Tudo estava bem;
eles eram felizes. Ela era tranquila e divertida. Como imaginar que ela teria
motivos e a coragem para arrancar seu próprio olho esquerdo? Ela não se
lembrava de nada porque seu cérebro bloqueara o fato. Bloqueara o horror do que
havia acontecido. Afirmava o rapaz que, para si mesmo, repetia com frouxa
convicção que isso era muito mais lógico. Isso era o que havia acontecido.
Ana continuava muito mais calada
do que o normal depois de voltar para casa. Não queria ver a seus amigos, não
queria sair. E passava muito tempo deitada na cama a ouvir músicas antigas. André
dizia a ela que tudo aquilo passaria com o tempo; que tudo voltaria a ser como
antes. Porém, a menina sabia que nada mais seria como antes, apesar da pequena
satisfação que agora ela sentia por ter a visão reduzida. Pois assim ela pôde
amenizar um pouco a dor de ver e perceber o que não queria. A realidade para
Ana tornara-se feia demais.
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