(in Se isto é um homem, tradução de Simonetta Cabrita Neto)
Primo Levi escreveu "Se isto é um Homem" para retratar o que viu e viveu durante o Holocausto. Aqueles horrores nos apavoram até hoje, contudo, hoje somos capazes de conviver com horrores similares em muitos países por este Mundo. Ainda hoje pessoas são vistas e tratadas como coisas descartáveis e sem importância.
Janeiro havia começado bem sem os
tradicionais desastres climáticos e parecia de bom agouro para este ano novinho
em folha; apesar da queda de mais um avião no final de 2014, (mas isso eu já
tinha posto na conta do torto 2014 como se fora o derradeiro desfecho de uma novela
dramática e ponto final). Porém, bastaram poucos dias para que nós, seres
humanos, mostrássemos ao que viemos nesse mundo e fizéssemos das nossas em
grande estilo. Dois rapazes mataram homens, artistas, covardemente. Os
primeiros munidos de metralhadoras e os últimos de canetas; pois, uma covardia
sem explicação.
E de fato não há explicação
lógica para o ódio, este ódio chamado de intolerância ou qualquer outro. Afinal,
qual a utilidade deste sentimento? Para que serve o ódio? Para que serviram as
mortes destas pessoas na França ou de quaisquer outras para aqueles que
continuam vivos? Para nada. Para Maomé, o profeta, tais atos não fizeram
nenhuma diferença seguramente. Para todos os muçulmanos nada melhorou, muito
pelo contrário. Para todos os franceses e europeus, para os latinos e os americanos,
para os asiáticos: nenhum ganho, nadica de nada. Ninguém ganhou nada com isso,
como ninguém nunca ganha nada com o ódio e a violência já que eles servem
exclusivamente para gerar mais ódio e violência. And that’s all folks!
Apenas àqueles que constroem as
armas e o medo, para aqueles que querem ter em suas mãos dinheiro e poder serve
o ódio. Contudo, não são eles que atiram pelo mundo afora, eles não se explodem
em nome de Allah ou contra ele, eles nem ao menos correm risco de vida para
ganhar o tal dinheiro que lhes é tão caro na grande maioria das vezes. Por que,
então, cientes disso ainda permitimos sermos manipulados por estes poucos homens
e mulheres tão espertos? Porque ainda falta a ciência para muito de nós, e
porque nos omitimos na maioria das vezes perante as falhas e as injustiças
mesmo quando cientes delas.
Perceber que ainda nos guia este
ódio irracional dos radicais, sejam eles de qualquer natureza, me assombra e
entristece. Contudo, me assombra mais ainda que as soluções pensadas por
aqueles que deveriam cuidar de seus cidadãos sejam quase tão equivocadas quanto
os atos que as geraram. Mais soldados, mais armas, mais restrições, mais medo e
mais desconfiança não resolverá o problema; estas coisas apenas trarão mais
ódio e problemas. O problema nunca foi a falta de armas e de soldados, mas o
excesso destes, a questão não é exacerbar as diferenças entre as pessoas e
afastá-las, mas sim aproximá-las respeitando estas diferenças, a solução seria
diminuir o sofrimento de todos, e não tentar delimitá-lo a guetos; não?
O Janeiro perfeito, do ano
perfeito, não existe. Ele nunca existiu, e apenas fomos lembrados disso porque
apenas nos lembramos disso quando o ódio mostra a sua cara sem disfarces. Bonito,
entretanto, foi ver a tantos franceses e outros a marchar pacificamente e sem o
tal do ódio por companhia. Afinal, num mundo de liberdade, igualdade e
fraternidade este sentimento não pode ganhar força. Jamais.
Numa ensolarada manhã de outono, num
domingo cheio de preguiça e silêncio, João caminhava pelas ruas do bairro.
Ainda era cedo e o rapaz voltava a pé para casa depois de uma noite de
trabalho; violão nas costas e cigarro entre os dedos. Havia tocado bem, muito
bem, e sentia-se feliz, satisfeito. Querendo apenas a cama e o silêncio como
companhia até muito depois do meio dia, João dobrou a esquina a quatro quadras
de casa. Foi então que a música de um piano chamou-lhe a atenção. Era
Fascinação. João olhou para cima, para uma janela do outro lado da rua. Através
da janela de onde vinha a música o rapaz viu a dançar como
se dança em sonhos a bailarina.
Ela parecia feita de luz e sons em
tons tristes e leves como os da canção. Seus braços flutuavam e os cabelos
castanhos soltos fluíam enquanto os olhos da bailarina pareciam perdidos nalgum
tempo no qual João não existia. Ele a fitava perdido, e ela, perdida, não o
via. Apenas dançava sozinha, a bailarina, uma canção tocada ao piano por mãos
de alguém que não se via do outro lado da rua. Por isso para João, ainda meio
embriagado pela noite, parecia que a canção era criada pelos movimentos da
menina morena que dançava. “Como ela é linda!”, pensou o rapaz. Cigarro lançado
ao chão, e passos devorando a rua, João chega à janela com olhos encantados e
sorri.
Do outro lado do vidro, a bailarina
continua a dançar em seu mundo. Ana ama dançar como não ama a nada mais nesta
vida, pois sente, dentro de si, que a música vibra e a faz mover-se. A menina
de cor pálida é movida à música e enquanto esta toca, ela vive em seu perfeito
mundo de sons e movimentos como se nada mais existisse naqueles momentos.
Contudo, minutos depois, ela percebe que rente
à janela há um homem jovem de violão nas costas que sorri. De soslaio sorriem os olhos da bailarina que
enquanto dança pensa que aquele é o sorriso mais bonito que ela já vira em sua
vida. Um sorriso curioso acompanhado de cabelos expressivos e olhos negros, de
uma barba por fazer e de certo desleixo de quem gosta de provar a vida sem
receios. Ana dança menos melancólica sabendo que há aquele sorriso do lado de
lá do vidro. “Quem será?” pergunta-se a bailarina que depois do último passo da
coreografia volta delicadamente o rosto para a janela e nota que o rapaz já não
está mais ali.
Ana engole o sorriso que quase lhe
saíra pela boca e a passos medrosos aproxima-se do vidro. Não há ninguém na rua
naquela manhã de domingo quando todos estão dormindo. A bailarina sente um
longo suspiro engasgado, e pensa que teria sido muito bom saber o nome do
menino de sorriso tão largo, lindo e iluminado.
Ainda havia dez minutos de ensaio. Dez minutos era tempo demais, e
depois de tanto tempo o rapaz do sorriso encantado já estaria perdido para
sempre. Talvez ele morasse por perto. Talvez passasse noutro domingo
qualquer... Talvez...
A bailarina dança dona de seus
movimentos tristonhos por mais dez minutos sentindo a cada movimento; sentindo
a canção. Despede-se da pianista e se veste para sair. Ela está cansada e um
tanto acabrunhada com o sumiço do sorriso do menino. Ela não entendia como
alguém que sorria para ela daquele jeito, de um jeito que ela não se lembrava
de ter visto na vida, podia num instante sumir. Pois então, por que sorria ele daquele
jeito para mim? Talvez ele nem sorrisse tanto assim. Talvez eu tenha apenas
imaginado um sorriso maior do que o sorriso possível para alguém que me olha
curioso através da janela. Talvez ele apenas achasse graça na dança...
Talvez...
E assim, com uma fila de pensamentos
a fazer curvas na sua cabeça, a bailarina abre a porta do estúdio para ir para
casa. E ali, do outro lado da porta, calado, está o sorriso mais bonito do
mundo a sorrir. Ana sorri o sorriso que engolira, e que agora sai da boca mais
amplo do que nunca saíra. Agora, encantado, o sorriso dela encanta o menino que
sem medo a convida para um café. Os olhos azuis de Ana sorriem. Ela adora café.
Sim.