Numa ensolarada manhã de outono, num
domingo cheio de preguiça e silêncio, João caminhava pelas ruas do bairro.
Ainda era cedo e o rapaz voltava a pé para casa depois de uma noite de
trabalho; violão nas costas e cigarro entre os dedos. Havia tocado bem, muito
bem, e sentia-se feliz, satisfeito. Querendo apenas a cama e o silêncio como
companhia até muito depois do meio dia, João dobrou a esquina a quatro quadras
de casa. Foi então que a música de um piano chamou-lhe a atenção. Era
Fascinação. João olhou para cima, para uma janela do outro lado da rua. Através
da janela de onde vinha a música o rapaz viu a dançar como
se dança em sonhos a bailarina.
Ela parecia feita de luz e sons em
tons tristes e leves como os da canção. Seus braços flutuavam e os cabelos
castanhos soltos fluíam enquanto os olhos da bailarina pareciam perdidos nalgum
tempo no qual João não existia. Ele a fitava perdido, e ela, perdida, não o
via. Apenas dançava sozinha, a bailarina, uma canção tocada ao piano por mãos
de alguém que não se via do outro lado da rua. Por isso para João, ainda meio
embriagado pela noite, parecia que a canção era criada pelos movimentos da
menina morena que dançava. “Como ela é linda!”, pensou o rapaz. Cigarro lançado
ao chão, e passos devorando a rua, João chega à janela com olhos encantados e
sorri.
Do outro lado do vidro, a bailarina
continua a dançar em seu mundo. Ana ama dançar como não ama a nada mais nesta
vida, pois sente, dentro de si, que a música vibra e a faz mover-se. A menina
de cor pálida é movida à música e enquanto esta toca, ela vive em seu perfeito
mundo de sons e movimentos como se nada mais existisse naqueles momentos.
Contudo, minutos depois, ela percebe que rente
à janela há um homem jovem de violão nas costas que sorri. De soslaio sorriem os olhos da bailarina que
enquanto dança pensa que aquele é o sorriso mais bonito que ela já vira em sua
vida. Um sorriso curioso acompanhado de cabelos expressivos e olhos negros, de
uma barba por fazer e de certo desleixo de quem gosta de provar a vida sem
receios. Ana dança menos melancólica sabendo que há aquele sorriso do lado de
lá do vidro. “Quem será?” pergunta-se a bailarina que depois do último passo da
coreografia volta delicadamente o rosto para a janela e nota que o rapaz já não
está mais ali.
Ana engole o sorriso que quase lhe
saíra pela boca e a passos medrosos aproxima-se do vidro. Não há ninguém na rua
naquela manhã de domingo quando todos estão dormindo. A bailarina sente um
longo suspiro engasgado, e pensa que teria sido muito bom saber o nome do
menino de sorriso tão largo, lindo e iluminado.
Ainda havia dez minutos de ensaio. Dez minutos era tempo demais, e
depois de tanto tempo o rapaz do sorriso encantado já estaria perdido para
sempre. Talvez ele morasse por perto. Talvez passasse noutro domingo
qualquer... Talvez...
A bailarina dança dona de seus
movimentos tristonhos por mais dez minutos sentindo a cada movimento; sentindo
a canção. Despede-se da pianista e se veste para sair. Ela está cansada e um
tanto acabrunhada com o sumiço do sorriso do menino. Ela não entendia como
alguém que sorria para ela daquele jeito, de um jeito que ela não se lembrava
de ter visto na vida, podia num instante sumir. Pois então, por que sorria ele daquele
jeito para mim? Talvez ele nem sorrisse tanto assim. Talvez eu tenha apenas
imaginado um sorriso maior do que o sorriso possível para alguém que me olha
curioso através da janela. Talvez ele apenas achasse graça na dança...
Talvez...
E assim, com uma fila de pensamentos
a fazer curvas na sua cabeça, a bailarina abre a porta do estúdio para ir para
casa. E ali, do outro lado da porta, calado, está o sorriso mais bonito do
mundo a sorrir. Ana sorri o sorriso que engolira, e que agora sai da boca mais
amplo do que nunca saíra. Agora, encantado, o sorriso dela encanta o menino que
sem medo a convida para um café. Os olhos azuis de Ana sorriem. Ela adora café.
Sim.
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