Artigo da Revista Piauí - Edição 119
Artigo um pouco longo para a nossa moderna falta de foco, porém, muito bem escrito como tudo que respira nas páginas da Piauí.
SEM ALMOÇO NO FT
Martin Wolf alerta para os
perigos da aliança entre a classe trabalhadora e a direita xenófoba
Por RAFAEL CARIELLO
O baixo crescimento crônico do
mundo rico e o aumento da desigualdade podem ameaçar a democracia, diz Wolf;
populismos de direita, como o de Trump, vieram para ficar.
No dia em que o Reino Unido
decidiu se separar da União Europeia, Martin Wolf foi se deitar cedo. “Nunca
fico acordado esperando o resultado de eleições”, disse o jornalista, há vinte
anos responsável pela principal coluna de análise econômica e política do
Financial Times. Wolf é um dos mais influentes comentaristas de economia do
mundo, seguido com atenção por vencedores do prêmio Nobel, presidentes de
bancos centrais, grandes investidores. O tipo de influência que ele exerce tem
menos a ver com o sobe e desce das Bolsas, com o frisson cotidiano de fazer ou
perder dinheiro, do que com o velho adágio de que o jornalismo é o “rascunho da
história”. No seu caso, por orientar a compreensão que a elite global tem do
mundo, a fórmula continua a valer. “Gosto de dormir bem”, explicou. “Fui para a
cama sem saber o resultado do plebiscito.”
Levantou-se na manhã seguinte um
pouco antes das seis – “minha mulher ainda estava dormindo” – e ligou o
computador. Havia se comprometido a escrever uma coluna sobre a decisão tomada
pelos eleitores britânicos, a ser publicada na versão online do jornal. Disse
ter ficado insatisfeito, mas não completamente surpreso, ao saber que 52% dos
seus conterrâneos tinham preferido, na véspera, deixar de fazer parte do bloco
político e econômico europeu.
Ninguém tinha clareza, naquele
momento, de como exatamente se daria o Brexit – neologismo para a saída do
Reino Unido da UE, a União Europeia. Na verdade, ninguém tem, ainda. Para
entrar em vigor, a decisão popular precisa ser chancelada pelo Parlamento,
etapa que não tem data para acontecer. Antes e depois disso, compete ao Reino
Unido e à UE negociarem um novo status para a relação econômica entre o país e
os seus vizinhos, do outro lado do Canal da Mancha. Não se sabe que forma ela
assumirá.
A campanha pelo Leave (pela saída
do bloco) havia defendido a necessidade de o Reino Unido escapar do que parecia
ser um intolerável emaranhado burocrático e regulatório imposto pelo
“continente” aos cidadãos e às empresas do país. Os partidários do Brexit
prometiam, além disso, restabelecer o controle do governo local sobre suas
próprias fronteiras, limitando o número de imigrantes e trabalhadores europeus
na Grã-Bretanha – o discurso, algumas vezes próximo da xenofobia, se
transformaria em ocasionais atitudes racistas em ônibus e trens de metrô, espaços
públicos e redes sociais, nos dias seguintes à vitória do Leave.
Do ponto de vista estritamente
econômico, contudo, era difícil entender e justificar a opção vencedora. Em
2015, a Europa foi o destino de quase metade (44%) de todas as exportações britânicas.
Não espanta, assim, que muitos defensores do Brexit queiram continuar a se
beneficiar do mercado único europeu, mantendo a possibilidade de vender bens e
serviços aos seus tradicionais parceiros comerciais sem a imposição de
barreiras tarifárias. Mas para isso Bruxelas exige, em contrapartida, que
qualquer cidadão europeu possa ser empregado no Reino Unido, sem restrições.
Livre movimentação de trabalhadores em troca da liberdade de comércio.
É essa a regra que vale hoje – e
que deve ser modificada, de alguma forma. Se não quiser fazer concessões num
dos pontos cruciais para os partidários do Brexit – o limite à entrada de
imigrantes –, o Reino Unido terá que abrir mão de parte do seu acesso privilegiado
ao rico mercado europeu.
Wolf, um senhor de 70 anos e
cabelos brancos, educado nos anos 60 em Oxford, é filho de imigrantes. Sua mãe
fugiu da Holanda assim que o país foi invadido pelos nazistas, em 1940. O pai,
um intelectual, escritor e dramaturgo, havia conseguido escapar da Áustria em
1937, um ano antes da chegada das tropas alemãs a Viena. Apesar da barriga
proeminente e dos ombros estreitos, o colunista do Financial Times passa a
impressão de alguém que ainda tem bastante vigor físico – algo que combina com
o semblante severo, as sobrancelhas expressivas e uma disposição, aparentemente
permanente, para o embate intelectual. Numa briga imaginária num pub londrino,
com pints de cerveja quente voando para todo lado, é mais fácil concebê-lo tomando
parte na confusão do que fugindo.
O jornalista é também um enfático
defensor dos benefícios políticos e civilizatórios de uma maior integração
econômica. Abertura ao comércio e maior mobilidade de trabalhadores – algum
tipo de “ordem liberal internacional”, como ele escreveu em seu livro Por que a
Globalização Funciona, de 2004 – foi algo que historicamente se mostrou eficaz
para impulsionar o desempenho econômico dos países, tanto ricos quanto pobres –
bem mais eficaz, de toda forma, do que economias fechadas, em geral
acompanhadas de excesso de intervenção e planejamento estatal, ele diz.
De resto, afirma Wolf, garantir
que as economias continuem a crescer – algo que tem se mostrado cada vez mais
difícil, nos últimos anos – é importante para manter a democracia viva. “Quando
as pessoas são privadas da esperança de uma vida melhor para elas próprias e
seus filhos, sociedades baseadas em acordos mútuos correm o risco de perecer”,
escreveu o jornalista uma década atrás, tomando como lição a crise dos anos 30
e a ascensão do fascismo.
O nacionalismo e a xenofobia de
muitos eleitores britânicos, de um lado do Atlântico, e a candidatura de Donald
Trump à Presidência dos Estados Unidos, do outro, já são em parte sintomas de
um baixo crescimento crônico, associado ao aumento da desigualdade, no mundo
rico, segundo Wolf. Uma situação de mal-estar econômico e social que, no
entanto, nada tem a ver com o aumento das trocas comerciais ou com os
movimentos migratórios de trabalhadores poloneses e mexicanos, como parece crer
parte do eleitorado nos dois países.
O problema, garante Wolf, é
outro. Ao que tudo indica, o atual baixo crescimento das economias
desenvolvidas, quando comparado às taxas alcançadas em boa parte do século XX,
resulta de uma incapacidade de repetir, na Europa, no Japão e nos Estados
Unidos, os saltos tecnológicos e os ganhos de produtividade do passado. Se esse
for de fato o diagnóstico – e não apenas uma demora na recuperação econômica
depois da crise financeira de 2008 –, então a letargia deve continuar pelas
próximas décadas, dando ainda mais força ao populismo de direita. Ideias como
as de Donald Trump ou as dos nacionalistas xenófobos europeus muito
provavelmente não são uma onda passageira, mas vieram para ficar, avalia o
colunista do Financial Times.
“Esse é provavelmente o
acontecimento mais desastroso na história britânica desde a Segunda Guerra
Mundial”, Wolf escreveu sobre o Brexit na manhã do dia 24 de junho, assim que
soube o resultado do plebiscito. “E o Reino Unido talvez não seja o último país
a sofrer esse tipo de terremoto. Movimentos semelhantes de cidadãos raivosos
têm acontecido em outras partes – em particular nos Estados Unidos e na França.
O Reino Unido mostrou o caminho ao se jogar do precipício. Outros podem vir a nos
seguir.”
Quatro dias depois de conhecido o
resultado do plebiscito no Reino Unido, escrevi a Martin Wolf consultando-o
sobre a possibilidade de fazer um perfil seu para a piauí. Depois de uma troca
não muito longa de mensagens – as dele sempre telegráficas –, Wolf indicou que
poderíamos conversar. Mas não parecia disposto a oferecer mais do que uma
entrevista, uma única entrevista. Já era alguma coisa. Num dos últimos e-mails,
sugeriu que nos encontrássemos numa quarta-feira, na semana seguinte, ao meio-dia.
O horário parecia promissor. Há
pouco mais de duas décadas o Financial Times deu início à seção Lunch with the
FT, em que semanalmente um de seus jornalistas entrevista alguma figura de
destaque da vida pública – políticos, economistas, mas também artistas e
intelectuais. O ambiente é um restaurante. Enquanto conversam, o repasto é
servido. O formato, que combina o interesse do debate de ideias à estrutura
narrativa construída por uma sucessão de pratos que parecem deliciosos,
funciona impressionantemente bem. Comida fala à imaginação.
O próprio Wolf havia escrito, nos
últimos anos, alguns ótimos “almoços com o FT”. Num bistrô em Nova York, em
2012, o economista Paul Krugman serviu-se de uma frugal salada niçoise,
enquanto o jornalista inglês atacava uma terrine de foie gras. Com Ben
Bernanke, ex-presidente do FED, o banco central americano, Wolf pedira um
peixe-espada ao forno, acompanhado de batatas, couve-de-bruxelas e cebolas.
Bernanke também quis peixe, mas grelhado, servido com purê de batatas.
Na mensagem seguinte, indiquei
que talvez fosse uma boa ideia repetirmos a fórmula. Seria uma espécie de Lunch
with the FT, só que dessa vez seria ele, Martin Wolf, o convidado. Perguntei
por um restaurante em Londres. Em resposta, Wolf disse apenas que deveríamos
nos encontrar meia hora mais tarde do que o horário sugerido originalmente:
“Chegue às 12:30. Martin.”
Pontualmente às 12h30 do dia
marcado, eu estava na recepção do Financial Times, na margem sul do rio Tâmisa,
não muito distante do centro financeiro de Londres. Tinha atravessado a cidade
de metrô, tomando o cuidado de levar uma certa quantidade de notas de 20 libras
no bolso, para o caso de o cartão de crédito não passar – afinal, “não existe
almoço grátis”.
Wolf foi me buscar nas catracas.
Em vez de sair de uma vez, conduziu-me de volta a sua sala, na parte de trás do
edifício, atravessando a redação a passos rápidos. Ao fundo do gabinete, perto
da mesa onde ele trabalha, uma janela grande dava para o rio, que corria quase
à altura da vista, com suas águas cor de barro. Como não bastassem as estantes
numa das paredes, o chão estava coberto por pilhas e mais pilhas de livros. Era
preciso achar o caminho entre eles. Na mesa de trabalho do jornalista havia um
computador desktop de tela muito grande, dessas usadas por designers, e um
laptop encaixado numa fresta da papelada. Três grandes pilhas de cartões de visita
se equilibravam sobre a mesa. Havia livros também nas duas cadeiras para
visitantes, e foi preciso que Wolf retirasse os volumes de uma delas, antes de
me indicar o assento. “Tudo bem se fizermos a entrevista aqui, certo?”
“Claro”, respondi. Por um breve
momento imaginei a carne branca e macia do peixe preparado no forno, bem
temperada, que eu não comeria.
“Por que o voto no Leave
venceu?”, perguntei.
Por causa de uma aliança inédita
entre antigos opositores à União Europeia – gente que pertencia sobretudo à
direita e sempre votou no Partido Conservador – e outros, novos opositores,
eleitores que no passado costumavam apoiar o Partido Trabalhista, disse Wolf.
“Uma parte significativa da
população britânica – algo entre um quarto e um terço – sempre foi contra a UE.
Porque viam a União Europeia como uma violação da soberania nacional, viam-na
como uma trama do continente para controlar o Reino Unido. Isso tem a ver com
antiquíssimos estereótipos britânicos, séculos de estereótipos, remontando ao
século XVI, quando os grandes inimigos eram a Espanha e a Igreja Católica. Em
certo sentido, não mudou tanto. Não em relação à Igreja Católica: essa não
ameaça mais.”
O jornalista estava sentado na
sua cadeira de trabalho, com um dos pés apoiado sobre a lata de lixo. As suas
curtas mensagens de e-mail, que me haviam feito temer um interlocutor lacônico,
eram enganadoras. Wolf parecia gostar de falar.
Essa antiga fração do eleitorado,
ele disse, sempre teve “uma certa ideia de soberania ligada a supostas ameaças
vindas do continente e ao papel do Parlamento, uma instituição central para a
identidade britânica”. “As grandes nações europeias têm jeitos diferentes de
conceber suas próprias identidades nacionais. No Reino Unido, e em particular
na Inglaterra, essa identidade está ligada à evolução das instituições
políticas, que são bastante antigas e têm um enorme poder simbólico. Nada disso
se aplica à França, à Alemanha ou à Itália, cujas instituições políticas são
relativamente novas – e mudaram, têm mudado constantemente.”
Política, Parlamento e identidade
nacional se confundem, para muitos eleitores britânicos. Assim, para muita
gente que partilhava desse senso de identidade passou a ser particularmente
preocupante, e ameaçador, o crescimento nos últimos trinta anos do poder político
de Bruxelas, ele disse.
A esses eleitores se somaram,
mais recentemente, os novos grupos antieuropeus, compostos sobretudo por gente
da classe trabalhadora, segundo Wolf, muitos deles incomodados com a presença
de imigrantes. Em 2004, dez novos países passaram a fazer parte da União
Europeia, a maioria deles pertencente ao Leste Europeu. Imediatamente o Reino
Unido se tornou um dos principais destinos para trabalhadores vindos de lá. Nos
supermercados de Londres, passou a ser corriqueiro encontrar grandes seções de
produtos poloneses, por exemplo. A imigração, de forma geral, aumentou ao longo
da última década. Em 2001, 8,9% da população da Inglaterra e do País de Gales
havia nascido fora do Reino Unido. Em 2011 esse grupo representava 13,4% da
população dos dois países.
“O crescimento da imigração,
especialmente da imigração de pessoas com menor capacitação profissional,
combinada, desde 2003 ou 2004, com a relativa estagnação dos salários nesse
grupo de pessoas que desempenham trabalhos menos sofisticados – algo que foi
acompanhado, depois, pelo choque da crise financeira –, tornou uma parte grande
da classe trabalhadora contrária à globalização, contrária à integração
europeia como uma força econômica. Encontraram então uma causa comum com aquele
primeiro grupo.”
A estagnação dos salários e a
reação à imigração fizeram com que muitas pessoas que tradicionalmente votavam
no Partido Trabalhista passassem a simpatizar com legendas de direita
xenófobas, como o Ukip, o Partido pela Independência do Reino Unido, na sigla
em inglês. “O Ukip acabou se tornando bastante popular entre essas pessoas. E
se tornou uma ameaça ainda maior para o Partido Trabalhista do que para o
Partido Conservador”, disse Martin Wolf. “Anti-imigrantes, contra mudanças,
desiludidos com o presente – todo esse sentimento ultrapassa as antigas
divisões entre esquerda e direita. O que se tem são pessoas que estão
insatisfeitas e que historicamente eram conservadoras, de um lado, e pessoas
que estão insatisfeitas que historicamente eram trabalhistas, de outro, todas
reunidas. Essa mudança permitiu que o Brexit tivesse mais de 50% dos votos.”
Muita coisa mudou – além da
proporção de estrangeiros na população britânica – desde que Martin Wolf
escreveu, em 2004, seu livro Por que a Globalização Funciona. Naquela época, as
principais forças ideológicas contra a intensificação dos fluxos de comércio e
integração econômica global pertenciam à esquerda. O discurso podia muitas
vezes parecer contraditório, opondo visões de “antiglobalistas” dos países
ricos àquelas de anticapitalistas de nações pobres: do “sul”, vinham críticas
de que o comércio global favorecia sobretudo as empresas multinacionais e os
países mais ricos, e que por isso inevitavelmente a globalização levaria ao
aumento das desigualdades econômicas. Do “norte”, o alerta de que o aumento da
importação de produtos industriais vindos do Terceiro Mundo provocava a
desindustrialização e a redução de salários na América do Norte e na Europa.
Era contra a esquerda, de toda
forma, que Wolf argumentava então, ao afirmar que a abertura ao comércio havia
beneficiado China e Índia, reduzindo a pobreza e melhorando as condições de
vida de centenas de milhões de pessoas nesses dois gigantescos países asiáticos.
Pouco mais de uma década depois,
vem sobretudo da direita o discurso mais eficaz contra a globalização. É
verdade que a esquerda centrava suas críticas, nos anos 90 e 2000, sobretudo na
livre circulação de capitais e mercadorias, enquanto a direita britânica tem
como foco a mobilidade de trabalhadores. Nos Estados Unidos, contudo, Donald
Trump alia um discurso xenófobo a ideias comerciais protecionistas, uma
bandeira que pertencia – e de certo modo ainda pertence – à esquerda americana.
A inflexão política é notável.
“Qual a razão dessa mudança?”,
perguntei.
“É fascinante, e não consigo
compreender completamente”, disse Wolf. “De fato, os movimentos intelectuais
dominantes contra a globalização no final dos anos 90 e começo dos anos 2000
estavam na esquerda. Era um movimento de estudantes, havia o Le Monde
Diplomatique, os líderes eram de modo geral marxistas, com muito apoio da
América Latina. O Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, era visto como um
movimento anticapitalista. Foi nesse ambiente, nesse contexto, que eu escrevi
aquele livro, e tentei dar argumentos contra aquelas visões de mundo.”
O jornalista fez uma ponderação.
“Essa linhagem não desapareceu completamente, ela ainda está por aí. Por
exemplo, entre os eleitores de Bernie Sanders, nos Estados Unidos. Creio que o
chavismo é uma forma radical desse tipo de corrente ideológica. Mas, para minha
surpresa, o ataque desde a esquerda à globalização não parece mais tão forte,
politicamente, quanto eu esperava que viesse a ser. Em grande medida porque
toda a esquerda se enfraqueceu. A coisa mais surpreendente é que a crise
financeira, uma crise gigantesca que deveria revitalizar a esquerda, tanto
intelectual quanto moralmente, foi na verdade acompanhada por uma quase
completa desintegração do projeto da esquerda.”
E qual a razão disso? Para Wolf,
uma espécie de dinâmica interna da própria esquerda levou a esse
enfraquecimento. Pouco a pouco, gestou-se uma crise na “coalizão de esquerda”
que a fez perder o apoio de parte da sua tradicional base eleitoral – não à
toa, o mesmo grupo de eleitores que acabou se vendo atraído pelo polo
ideológico oposto. “A esquerda, assim como a direita, sempre foi uma coalizão
de muitos interesses distintos, de muitas ideias distintas. A tentativa de Marx
de dividir as coisas de maneira binária nunca funcionou muito bem, embora se
aplicasse um pouco melhor à sua época.”
“De modo geral a esquerda tende a
ser cosmopolita, aberta a mudanças sociais profundas, mesmo aquelas que são
incômodas para muitas pessoas – todas as boas causas, todas as que valeram a
pena. A esquerda esteve do lado do feminismo, dos direitos dos gays, das causas
do Terceiro Mundo. Tudo isso, que pode ser visto como socialmente emancipador,
teve como resultado a enorme alienação, a meu ver, das suas bases tradicionais
nas classes trabalhadoras. Socialmente e culturalmente, essas mudanças
terminaram por alienar muitas dessas pessoas – em particular os homens.”
Sem tirar o pé de cima da lata de
lixo – ele praticamente não mudou de posição, durante quase duas horas de
conversa –, Wolf foi adiante. “Aquele movimento antiglobalização dos anos 90
era sobretudo um movimento estudantil, composto por pessoas jovens e
escolarizadas. Nunca foi um movimento da classe trabalhadora, que olha para
essas pessoas sem ser capaz de se identificar completamente com elas. ‘Eles não
são como nós.’ Assim, eles, a classe trabalhadora, têm estado ‘soltos’, do
ponto de vista de filiação partidária e ideológica, nos últimos 25 anos. O que
eles estavam procurando eram partidos que enfatizassem valores fundamentais
para eles, para a classe trabalhadora. Quais são esses valores? Hierarquia.
Ordem. Proteção contra mudanças sociais desestabilizadoras. Reafirmação de sua
posição na sociedade – em particular para os homens. Nós subestimamos, creio, o
grau de incômodo vivido pelos homens mais pobres, associado com mudanças
sociais que afetam o seu orgulho próprio, seu senso de masculinidade. Não estou
defendendo isso. Não estou dizendo que eles têm razão. Mas é o que eu vejo que
está acontecendo. E muitas das mulheres desses homens da classe trabalhadora os
acompanham nesses sentimentos.”
Assim, uma aliança que havia sido
duradoura, entre causas progressistas – a defesa dos direitos das minorias – e
os interesses dos grupos de trabalhadores mais pobres, entrou em crise. “Essa
capacidade de sustentar grandes coalizões de esquerda entre as forças de
cosmopolitismo progressista, de um lado, e a antiga classe trabalhadora, de
outro – esse tem sido o lugar onde a esquerda tem se enfraquecido. O que eu
acho que aconteceu, ao mesmo tempo, foi que homens da classe trabalhadora,
procurando por redes de solidariedade, proteção contra mudanças sociais
desestabilizadoras e proteção contra mudanças econômicas – que desde uma
perspectiva limitada eles associam sobretudo com a liberalização do comércio –,
encontraram políticos que, em essência, apoiavam uma combinação de
etnonacionalismo, protecionismo econômico e conservadorismo social. Fascismo,
de certa forma.”
O rio Tâmisa continuava a correr,
mais rápido do que eu imaginava, para lá da janela atrás de Martin Wolf.
Parecia que ia chover. “Creio que é por isso que nos Estados Unidos, no Reino
Unido e também na Europa partidos etnonacionalistas da direita populista são
mais atraentes para a classe trabalhadora do que costumavam ser – e as
coalizões de esquerda se tornaram menos atraentes. Eu não esperava ver isso
acontecer quando escrevi o livro, no início dos anos 2000, mas acho que ninguém
esperava. O que estamos vendo agora é uma mudança muito preocupante – embora
bastante compreensível.”
Já passava das 13h30. Será que
Martin Wolf tinha comido um sanduíche, antes que eu chegasse? Um sanduíche iria
bem, embora nem se compare a uma terrine de foie gras – ou mesmo a uma salada
niçoise. Não era o caso de lamentar, claro, a disposição do entrevistado para
conversar pelo tempo que fosse necessário. Ao contrário. Por diversas vezes o
telefone celular vibrou sobre a mesa, sem que Wolf fizesse menção de
consultá-lo ou mesmo de checar quem chamava.
Parecia absorvido pelas
preocupações políticas. A chave para compreender o pessimismo de Wolf, como ele
já deixara claro em textos para o Financial Times, estava na sua visão sobre as
perspectivas econômicas dos países ricos. Ele havia tratado disso na véspera,
numa coluna sobre o livro The Rise and Fall of American Growth [Ascensão e
Queda do Crescimento Americano], do economista e historiador econômico Robert
Gordon.
Na obra, Gordon defende que o
padrão de rápido crescimento sustentado pela economia americana ao longo da
maior parte do século XX chegou ao fim e não deve se repetir nas próximas
décadas. Em seu comentário, Wolf lembrava que a economia americana, a mais inovadora
do mundo – ao longo de todo o século XX na fronteira dos avanços tecnológicos
globais –, apontava o caminho para o restante do mundo desenvolvido. Ganhos de
produtividade – em particular na indústria – haviam permitido que se fabricasse
uma quantidade cada vez maior de produtos, em menos tempo, a um custo menor. O
padrão de vida e os salários da maior parte da população também cresceram, em
consequência disso. Os ganhos vieram sobretudo da progressiva adoção, até os
anos 1970, de invenções fundamentais feitas entre o século XIX e o início do
XX, como a eletricidade, novos produtos químicos e farmacêuticos e o motor de
combustão interna.
Foi esse tipo de crescimento
acelerado da renda da maior parte da população, me disse Wolf no Financial
Times, que por sua vez permitira avanços democráticos desde o século XIX. “Em
1800, não havia democracias com sufrágio universal em nenhum lugar do mundo.
Hoje há muitas delas. E por quê? Há quem diga que é porque nos tornamos mais
sábios e inteligentes. Na verdade, a principal razão, a meu ver, foram os
imensos ganhos de prosperidade desde então, o desenvolvimento de uma economia
sofisticada que exigia o aumento da escolarização de toda a população, maior
urbanização. A transformação da nossa sociedade ao mesmo tempo permitiu e
exigiu maior inclusão política. É algo completamente diferente de uma sociedade
em que 70% ou 80% das pessoas são camponeses.”
“Se você tem uma economia que
cresce, é possível para todo mundo melhorar de vida. Chega-se a uma situação de
‘jogo de soma positiva’, na política. Quer dizer, se todo mundo melhora, você
distribui os resultados do crescimento sem fazer nenhum grupo em particular
piorar de vida. É um ambiente bastante positivo, com menos conflitos, para
fazer política. Era a situação que o Brasil vivia durante o boom de
commodities, por exemplo – situação que o país não vive mais, agora.”
O problema, argumenta Robert
Gordon em seu livro, é que nada que tenha sido inventado e adotado depois dos
anos 70, como os computadores pessoais e a revolução na tecnologia de
informação, teve ou terá impacto tão decisivo e duradouro nos ganhos de
produtividade quanto aquelas invenções dos últimos dois séculos – e a economia
não deve voltar a crescer como no passado. Essa é a parte mais controversa do
argumento do economista americano. Afinal, como é possível saber?
Ele apresenta fortes indícios de
que as inovações recentes, embora tenham tido algum impacto no final dos anos
90, deixaram de provocar ganhos de produtividade significativos desde 2004, pelo
menos.
O economista americano cita o
empresário Peter Thiel, cofundador da empresa de pagamentos online PayPal, para
ilustrar as esperanças frustradas do novo século. “Nós queríamos carros que
voassem, e em vez disso ganhamos 140 caracteres”, disse Thiel, em referência ao
Twitter e às redes sociais.
Mas quem garante que novas
invenções não possam disparar um renovado processo de crescimento, como o que
aconteceu na Europa e nos Estados Unidos entre a Segunda Guerra Mundial e
meados dos anos 70?
De certa forma, respondeu Wolf,
as economias avançadas pagam o preço do próprio sucesso. O rápido crescimento
da escolaridade de seus trabalhadores – que tanto as ajudou a crescer – ficou
para trás. Famílias menores e uma maior expectativa de vida, resultados da
prosperidade econômica, também trouxeram dificuldades: associado ao
envelhecimento da população, o número de pessoas em idade economicamente ativa
passou a crescer mais devagar. Os impressionantes avanços de produtividade na
indústria, em particular, permitiram que se fabricasse muito mais e a renda
total crescesse, mas empregando cada vez menos gente, proporcionalmente, e
levando ao mercado produtos cada vez mais baratos. Como consequência, a
participação da indústria de transformação nas economias diminuiu – representa
hoje pouco mais de um décimo do Produto Interno Bruto dos países ricos.
Assim, mesmo grandes inovações
industriais – novas máquinas, novos processos –, que no passado contribuíram
para o crescimento acelerado, terão daqui para a frente impacto reduzido no
ganho de produtividade total da economia, no aumento da renda e no incremento
do PIB – porque seu impacto se dará principalmente sobre essa fração menor do
total da produção. Claro que há inovações que afetam o conjunto da economia. Mas
tem se mostrado bem mais difícil conseguir ganhos de produtividade expressivos
em muitas áreas no setor de serviços, cada vez mais importantes. É limitada a
ajuda que máquinas e computadores podem oferecer ao trabalho em creches e
restaurantes, por exemplo, embora não seja inexistente. Por fim, acrescentou
Wolf, não faz sentido culpar a globalização e o comércio por essa situação. A
solução proposta pelos protecionistas é inútil.
“A fatia de bens industriais no
produto total do Reino Unido e dos Estados Unidos, hoje, é cerca de 10%. Se
eliminássemos tudo o que é importado nesse setor, e ficássemos completamente
autossuficientes, a parte da indústria alcançaria uns 14% – e só. Todos aqueles
postos de trabalho industriais nunca mais voltarão a existir. Nunca. Porque o
crescimento da produtividade é maior no setor industrial do que em qualquer
outro setor da economia, e o crescimento da demanda por esse tipo de produto é
menor do que o aumento da renda. Nos países ricos, o aumento de renda não é
mais gasto principalmente em produtos industriais. Todo mundo já tem mais de um
carro na garagem nos Estados Unidos, mesmo os pobres. Gasta-se o dinheiro extra
indo a restaurantes, pagando por melhores creches, esse tipo de coisa. Os trabalhos
industriais já eram.”
A diminuição da importância da
indústria no conjunto da economia também contribuiu, segundo Robert Gordon,
para o aumento da desigualdade – que não à toa vem crescendo desde os anos 70
nos Estados Unidos e no Reino Unido.
“Trabalhos industriais
relativamente bem remunerados desapareceram, à medida que a fatia dos postos de
trabalho na indústria caiu, nos Estados Unidos, de 30% em 1953 para menos de
10% atualmente”, ele escreve, em seu livro. Assim, a composição geral dos
postos de trabalho naquela sociedade mudou, com uma proporção maior de empregos
criados no topo da “distribuição ocupacional” – ou seja, funções que exigem
melhor formação técnica – e na base – trabalhos manuais ou que não necessitam
de grande escolaridade –, em detrimento do “miolo”, dos tradicionais trabalhos
da classe média. Quem estava no meio passou a ter que disputar vagas e salários
com quem tem menos escolaridade, fazendo uma pressão ainda maior pela
diminuição da renda de quem já ganhava pouco.
Se o crescimento ao longo do
século XX havia ajudado a política, diminuindo os atritos sociais – a exemplo
do que aconteceu no Brasil nos anos Lula, disse Wolf –, a tendência no mundo
rico, daqui para a frente, é que o contrário aconteça.
“Se estamos num mundo em que o
crescimento diminuiu de ritmo de maneira aparentemente prolongada, e há forças
econômicas fortes trabalhando a favor do aumento da desigualdade, então estamos
num mundo em que a política se torna muito difícil num contexto democrático.
Pode até mesmo ficar impossível manter a democracia. Podemos testemunhar o
surgimento de forças profundamente antidemocráticas. Eu não esperava que fosse
acontecer tão rápido, como já aconteceu. Porque a candidatura de Trump é isso: uma
forma diluída de fascismo.”
A entrevista estava chegando ao
fim. “Tudo somado, uma grande parte da nossa população se sente
desestabilizada, à deriva, ressentida – e eu não vejo como isso vai ser
resolvido. Chego à conclusão de que esses fenômenos vão ser uma parte
importante da nossa sociedade e da nossa política no futuro próximo, até onde a
vista alcança.”
Já eram quase 14h30. Martin Wolf
se levantou para me acompanhar até a saída, passando pelas mesas dos
repórteres. No caminho, comentou que quase nunca trabalha ou escreve de casa –
gosta de se encontrar com os colegas, e do ambiente de redação. “Este é um
grande jornal”, declarou. Perguntei se por acaso ele já tinha almoçado. “Ainda
não”, respondeu. Havia uma boa cantina no Financial Times, ele me disse, ali
mesmo naquele edifício. Comeria alguma coisa por lá. “Ah, bom”, eu falei.
Agradeci a gentileza da conversa e saí de lá à procura de um pub.