segunda-feira, 25 de outubro de 2021
quarta-feira, 20 de outubro de 2021
Clariceando
Alma luz
Minha alma tem o peso da luz
Tem o peso da música
Tem o peso da palavra nunca dita,
Prestes quem sabe a ser dita
Tem o peso de uma lembrança
Tem o peso de uma saudade
Tem o peso de um olhar
Pesa como pesa uma ausência
E a lágrima que não chorou
Tem o imaterial peso de uma solidão
No meio de outros
A lucidez perigosa
Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
– já me aconteceu antes. Pois sei que
– em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade –
essa clareza de realidade
é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.
Dá-me a tua mão
Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
– nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
Clarice Lispector
domingo, 17 de outubro de 2021
Seguimos
Seguimos
À mingua sem cama sem língua
Nem uma ínfima gota da tua saliva
Solo seco
Seco eu a solo
Nesta vida sem inventos
Sigo
Tu segues
Cegos ambos à fantasia de uma vida de flores,
borboletas e andorinhas
Este inesperado encontro para além do conjunto espaço-tempo que
nos continha
Foi um grande susto
Justo
Injusto, como saber o que fazer quando nada se sabia?
Não soubemos
Seguimos, não conseguimos seguir a acreditar que a vida é
muito mais do que
aquilo que se pode explicar
ficas tu
e assim fico
à mingua, sem o colo das palavras faladas, cantadas e
encantadas
que me faziam acreditar
que o amor não é apenas uma tola mentira
que nos agrada contar.
terça-feira, 12 de outubro de 2021
Poema Enjoadinho (aos meus miúdos de coração)
Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como
sabê-los?
Como
saber
Que
macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!
Ao tempo
Ao tempo
Devora-me, tempo
Pele, ossos e nervos
Levando cotidianamente um pouco de mim
Eu, que me deixo levar de bom grado
Sem medos,
Sem termos,
De braços dados a si
Caminho,
Construo com suas entranhas meu mundo enquanto
Devora-me,
e de si alimento-me engordando pensamentos
ganhando peso na terra
ganhando cores meus sonhos
Estamos ambos a caminho do fim, sem pressa, a ouvir as águas
deste riacho de pedrinhas coloridas,
um tanto preguiçoso,
muito claro.
Seguir.