Parte 1
Ana percebeu-se.
Suave e indefinida, apenas uma leve consciência do existir respirava. A menina
sabia-se viva, porém não passava de fina consciência todo o saber que a ela lhe
cabia. Ana... Ana era a única coisa que dela restara, toda sua identidade, sua
consciência resumia-se a três letras – Ana. Com os olhos fechados, pregados
pelo medo do que pudessem ver, de tudo o que não poderiam compreender, a mulher
jazia numa cama. Braços inertes, pernas inertes. Por algum motivo que ela
desconhecia havia um pânico do mover-se. Mover-se doeria? E se sua pele abrisse
pelo esforço; pelo desejo agudo dos ossos de rompê-la para fugir dali. Para
fugir de um corpo que a eles não pertencia, um corpo do qual a dona não tinha
memória e que, mais que ela mesma, lhe parecia um peso; um estorvo.
Passaram-se
minutos, dezenas arrastadas deles. Horas de caminhar lento passaram antes que
Ana abrisse os olhos castanhos e opacos no exato instante em que a curiosidade
tão natural da alma humana venceu o medo. Os olhos viram o branco corpo que não
reconheciam, mas que a eles pertencia. Um vestido branco e leve de delicadas
flores amarelas e pálidas cobria-lhe o ventre, parte das pernas; a metade das
coxas. Os olhos desceram pelas coxas, a canela... A unha do dedo maior do pé
esquerdo sumira. O dedo latejava, ou ela imaginava-o a latejar porque é
exatamente isso que se espera de um dedo cuja unha foi arrancada.
Arrancaram-na? Quando? Por quê?... Por quê?... Por quê?
Os porquês
reproduziam-se em ecos doloridos, magoados. Os porquês provocaram lágrimas silenciosas
e órfãs. Ana não se reconhecia, e sentia-se dona de uma solidão tão ampla
quanto podia ser a solidão de quem não se sabe. O choro ganhou ânimo para
afogar os olhos da menina que os tornou a fechar. Ana queria esquecer-se
completamente.
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