Parte 2
Pela janela,
através de exaustas venezianas de madeira azul claro, entrava delicada luz que tocava
o braço direito de Ana. O choro cessara há algum tempo, talvez ela tivesse
adormecido mais uma vez; talvez. Não se lembrava desta luz a tocar sua pele
assim como não se lembrava de sua vida, de seu nome completo, de onde estava,
de qual dia, mês ou ano aquele era. Assim, tão sem lembranças e apenas certa
daquilo que não sabia, Ana duvidava até mesmo de sua própria existência.
“Estou mesmo
viva?” pensava a menina estática que jazia na cama. “Estou mesmo viva e respiro
ou apenas imagino este respirar?”
Ana lembrou-se
da falta da unha em seu pé esquerdo e reabriu seus olhos. Era verdade,
faltava-lhe uma unha e havia um pequeno bocado enegrecido de sangue que saíra
do dedo e escorrera pelo peito do pé. O dedo lhe doía e, portanto, ela estava
viva; concluiu Ana. Os não vivos não sentem dor, não sentem nada, e a dor do
dedo do pé esquerdo era, naquele momento, um conforto para aquela mulher que
não sabia quem era ela e nem onde estava. Havia uma certeza; quiçá a única que
qualquer ser humano podia ter nesta vida: Ana sabia-se viva.
Por que havia
tanto medo nela? Medo de mover-se, medo de ouvir algo, medo de ver algo para
além do vestido florido e da unha ausente. As paredes do quarto eram brancas e
nuas como se tivessem sido recém pintadas, e contrastavam com as cansadas
venezianas de azul sem vida. Não havia quadros, não havia manchas, não havia
nem ao menos um único prego ou gancho que maculasse aquele branco completo e
sufocante.
“Onde estou?”
pensava a atordoada mente da moça que jazia numa cama barata de metal cinza
claro.
Ana abriu a
boca, pois percebera os secos lábios rachados e sentiu a urgente necessidade de
umedecê-los como se disso dependesse a manutenção de sua vida. A língua de Ana
tocou lhe os lábios e percebeu um pequeno corte à direita assim que o sal do
sangue invadiu-lhe o paladar.
“Onde estou, meu
Deus?” pensou a menina que não ousava falar por medo de que alguém a ouvisse.
Voltaram as
lágrimas ao rosto de Ana.
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