Perdida
Ana percebeu-se.
Suave e indefinida, apenas uma leve consciência do existir respirava. A menina
sabia-se viva, porém não passava de fina consciência todo o saber que a ela lhe
cabia. Ana... Ana era a única coisa que dela restara; toda sua identidade. Sua
consciência resumia-se a três letras – Ana. Com os olhos fechados, pregados
pelo medo do que pudessem ver, de tudo o que não poderiam compreender, ela
respirava reticente. A mulher jazia numa cama. Braços inertes, pernas inertes.
Por algum motivo que ela desconhecia havia o medo do mover-se. Mover-se doeria?
E se sua pele abrisse pelo esforço; pelo desejo agudo dos ossos de rompê-la
para fugir dali. Para fugir de um corpo que a eles não pertencia, um corpo do
qual a dona não tinha memória e que, mais que ela mesma, lhe parecia um peso;
um estorvo.
Passaram-se
minutos, dezenas arrastadas deles. Horas de caminhar lento passaram antes que
Ana abrisse os olhos castanhos e opacos no exato instante em que a curiosidade
tão natural da alma humana venceu o medo. Os olhos viram o branco corpo que não
reconheciam, mas que a eles pertencia. Um vestido branco e leve de delicadas
flores amarelas e pálidas cobria-lhe o ventre, parte das pernas; a metade das
coxas. Os olhos desceram pelas coxas, a canela... A unha do dedo maior do pé
esquerdo sumira. O dedo latejava, ou ela imaginava-o a latejar porque é
exatamente isso que se espera de um dedo cuja unha foi arrancada.
Arrancaram-na? Quando? Por quê?...
Os porquês
reproduziam-se em ecos doloridos, magoados. Os porquês provocaram lágrimas
silenciosas e órfãs. Ana não se reconhecia, e sentia-se dona de uma solidão tão
ampla quanto podia ser a solidão de quem não se sabe. O choro ganhou ânimo para
afogar os olhos da menina que os tornou a fechar. Ana queria esquecer-se
completamente.
Pela janela,
através de exaustas venezianas de madeira azul clara, entrava delicada luz que
tocava o braço direito de Ana. O choro cessara há algum tempo, talvez ela
tivesse adormecido mais uma vez; talvez. Não se lembrava desta luz a tocar sua
pele assim como não se lembrava de sua vida, de seu nome completo, de onde
estava, de qual era o dia, mês ou ano. Desta maneira, tão sem lembranças e
apenas certa daquilo que não sabia, Ana duvidava até mesmo de sua própria
existência.
“Estou mesmo
viva?” pensava a menina estática que jazia na cama. “Estou mesmo viva e respiro
ou apenas imagino este respirar?”
Ana lembrou-se
da falta da unha em seu pé esquerdo e reabriu seus olhos. Era verdade,
faltava-lhe uma unha e havia um pequeno bocado enegrecido de sangue que saíra
do dedo e escorrera pelo peito do pé. O dedo lhe doía e, portanto, ela estava
viva; concluiu. Tudo que não está vivo não sente dor, não sente nada. E a dor
do dedo do pé esquerdo era, naquele momento, um conforto para aquela mulher que
não sabia quem era ela e nem onde estava. Havia uma certeza; quiçá a única que
qualquer ser humano podia ter nesta vida: Ana sabia-se viva. E sua certeza era
concreta porque seu dedo doía.
Por que havia
tanto medo nela? Medo de mover-se, medo de ouvir algo, medo de ver algo para
além do vestido florido e da unha ausente. As paredes do quarto eram brancas e
nuas como se tivessem sido recém pintadas e contrastavam com as cansadas
venezianas de azul sem vida. Não havia quadros, não havia manchas, não havia
nem ao menos um único prego ou gancho que maculasse aquele branco completo e
sufocante.
“Onde estou?”
pensava a atordoada mente da moça que jazia numa cama barata de metal cinza
claro.
Ana abriu a
boca, pois percebera os secos lábios rachados e sentiu a urgente necessidade de
umedecê-los para que a fina pele não se rompesse. A língua de Ana tocou lhe os
lábios e percebeu um pequeno corte à direita através do sal do sangue que lhe
invadiu o paladar.
“Onde estou, meu
Deus?” pensou a menina que não ousava falar por medo de que alguém a ouvisse.
Voltaram as
lágrimas ao rosto de Ana.
Ana tentou
acalmar-se, conter o pranto; pensar. Pensar o quê? Não sabia. Sabia apenas que
jazia na cama com medo, que lhe faltava uma unha, que a boca estava ferida e
que emagrecera. Emagrecera? Como podia ser dona desta impressão se não se
lembrava de nada? Mais que um fato, aquela era uma sensação. Ana sentia que
tinha sido maior, que havia alguma carne no corpo que agora parecia seco. Ela
estava seca. “Como alguém seco chora?”, pensou.
Então, a menina
chorou sem lágrimas sentindo a mágoa a invadir-lhe, a dor a abraçá-la. Havia
tanto silêncio e solidão. Tanto silêncio que parecia que o mundo deixara de
existir.
“O que existe
por detrás da janela azul?”, perguntou-se. “O quê?”
Por alguns
instantes a mulher de vestido florido e gasto tentou ouvir o mundo afiando os
ouvidos. Nada. Ana não entendia como podia haver tanto silêncio e lembrou-se da
mãe. De uma mãe sem rosto definido e que era sua mãe porque a chamava de filha.
Ela quase podia ouvir-la naquele instante e ela, como toda gente, devia ter uma
mãe. Onde estava a sua mãe que não estava aqui ao seu lado? Todas as mães ficam
ao lado de seus filhos nos momentos difíceis, e aquele era um momento difícil.
Muito difícil.
“Qual o nome de
minha mãe?”
“Pareço-me com
ela?”
“Está viva?”
“Por que não
está aqui agora?”
Eram tantas as
perguntas que atormentavam sua cabeça que Ana sentiu-se irritada; com raiva. E
num impulso sem qualquer medo ou pensamento, sentou-se na cama. Seus olhos
arregalaram-se, o coração acelerou, o medo cresceu. E pela primeira vez Ana
ouviu sua própria voz baixa, rouca e pouca.
“Mãe?”
Não havia
nenhuma dor para além da dor do dedo do pé esquerdo. Ana estava um pouco zonza
pelo levantar-se de repente, mas não havia dor. Ela olhou para a janela e
sentiu que o medo diminuía. Ela tinha que olhar pelas frestas. Talvez pudesse abri-la
e ver. Talvez.
O chão estava
fresco, não frio. A suave temperatura do solo de um revestimento bege a
reconfortou porque com ele veio a idéia de que o dia deveria estar bonito lá
fora. O chão estava quase morno; era verão com certeza, porque apenas no verão
o chão fica agradável daquele jeito dentro das casas. Ana amava o verão e seu
sol cheio de força e vida. Amava os dias longos e as pessoas com roupas leves a
passear pelas ruas. No verão havia mais gente na rua e ela adorava este tempo
de vestidos levianos, coloridos, suaves e pequenos.
Ana tentou levantar-se
da cama, pois queria ver o verão pelas frestas da janela. E ela imaginava uma
bela tarde ensolarada a julgar pela luz que entrava pelas frestas, imaginava
pessoas nas ruas, e imaginava que alguém dentre todos que passavam pela rua
poderia explicar-lhe onde ela estava. Ana imaginava algo bonito quando uma dor infinita
invadiu-a. Os ossos da perna esquerda pareciam ruir-se por dentro, e a dor
cortou-a sem piedade ou compaixão.
A mulher vestida
de verão sentou-se novamente e, assustada, fitava a perna que latejava
tremendamente e parecia querer desmanchar-se em pedaços pequenos.
Ana deitou-se,
fechou os olhos. Sem forças, sem lágrimas, ela queria esquecer-se de si mesma
mais uma vez.
Era noite quando
Ana despertou lembrando-se da dor na perna. Apalpou-a com as mãos e sentiu um
pequeno oco coberto de pele e uma cicatriz na coxa. “Houve um acidente?”,
pensou. Depois de alguns minutos a pensar, a tentar se lembrar de tudo ou de
qualquer coisa, Ana decidiu-se levantar mais uma vez. Agora com cuidado; com
delicado cuidado com sua perna e apoiando-se nos móveis e na parede, Ana
caminhou até a janela azul que agora se mostrava cinzenta.
Garoava. A menina podia ver pelas frestas da
veneziana as finas gotas de chuva e o reflexo da luz no asfalto úmido. Havia
uma grande árvore sem frutos defronte de sua janela e um carro, de cor escura e
indefinida, estacionado diante de um portão de ferro branco. A rua era estreita
e não havia ninguém a caminhar por ela. Era apenas uma pequena rua lateral sem
grande importância; sem pés caminhando por ela.
Não adiantava
gritar, e Ana ficou calada e parada à janela por minutos a esperar que alguém
aparecesse. Como naqueles momentos nos quais não queremos crer que já não temos
mais a quem amamos conosco, e esperamos. Esperamos que a pessoa pense melhor e
retorne, que os olhos dentro do caixão milagrosamente nos olhem; que o tempo
volte. Ana esperou até que a dor de sua perna venceu-a, e ela, derrotada,
resignou-se a voltar ao seu lugar neste mundo. Ana deitou-se na cama de metal
cinza e deixou-se estar como quem não chega a existir de verdade; como uma
sombra.
Ana não se lembrava de ter comido ou bebido
algo. Deveria sentir fome e sede. Onde estava a sua sede se lhe faltava tanta
água que seus lábios haviam rachado? Uma pessoa não pode não sentir sede se até
a saliva lhe faltava. Os pensamentos tortos de Ana a sufocavam num emaranhado
de fios de uma teia espessa. “Eu tenho que ter sede. Eu tenho que sentir sede
como toda gente sente sede.”, pensou a mulher assusta.
“ÁGUA!”. Gritava Ana desesperada. ÁGUA, ÁGUA; água...
ahhhhhhhhhhhhhhhh.
Sentada na cama,
de pernas estiradas. Ana gritou até não conseguir emitir mais qualquer som. Até
que as palavras se tornaram indecifráveis urros de confusão e dor. A mulher do
vestido florido não queria estar ali; ela não queria mais existir.
Amanhecera. Ana
abriu seus olhos embaçados pelo sono e notou a pequena borboleta amarela a voar
pela sala. De onde viera? Como era lindo
ver algo com vida acercar-se depois de tanta solidão. Mesmo que fosse uma vida
silenciosa como é a vida das borboletas. Vida leve e colorida. Breve.
O dia estava
bonito e a menina podia ver o céu azul pela janela aberta. As venezianas estavam
abertas. Apenas um vidro separava Ana do mundo lá fora, pois alguém abrira as
venezianas e deixara entrar a pequena borboleta. Por quê?
Um incômodo medo
de ter o que não se espera, da mudança, fez com que Ana ficasse quieta. Ela
deveria correr, deveria tentar abrir a janela, deveria pedir por socorro,
deveria... “Eu deveria saber quem eu sou.”, pensou a jovem mulher. O não saber
congelou-a. Melhor do que nada era ter a borboleta a voar pelo quarto e isso a
deixou imóvel. Imóvel a esperar que a borboleta se achegasse mais, a esperar
que ela pousasse bem perto; sobre ela.
Alheio a
qualquer perturbação, o inseto simplesmente voava curioso pelo quarto. O vôo
distraiu Ana que, por alguns minutos, deixou tudo de lado: o medo, a dúvida, a
dor; e apenas admirou as suaves asas.
Havia apenas a borboleta amarela a voar pela sala d’algum lugar
desconhecido. E aquilo era bom, era tão bom que fez Ana sorrir. Então, Ana
lembrou-se: a janela estava aberta; pelo menos sua veneziana estava aberta. A
menina levantou-se com cautela e caminhou até a janela de onde se via um lindo
céu azul de outono.
De repente Ana
lembrou-se da dor em sua perna e da unha ausente. A cicatriz já não doía, a
perna já não doía e a unha, ainda imperfeita e rugosa, voltara a crescer e
ocupava grande parte do dedo maior de seu pé esquerdo. Muito tempo passou sem
que ela se desse conta, e pela janela ela vislumbrava a grande árvore do outro
lado da rua quase nua. As poucas folhas que ainda se agarravam a seus galhos
tinham uma cor marrom desbotada e o chão da calçada estava repleto de tantas
folhas que mal podia ser visto em alguns trechos da rua por onde vez ou outra
uma pessoa passava.
O chão estava
frio e Ana se perguntava por que ela não gritou quando surgiram as primeiras
pessoas na rua. Ela não gritou, não bateu no fino vidro; ela não disse nada. Por que não gritara? Por que gritaria? Ela sabia
o que a impediu de dizer qualquer coisa, de gritar, de tentar pedir ajuda. A menina
não sabia quem ela era para além de um nome com três letras, e ela sabia que
durante o tempo em que estava naquele quarto ninguém apareceu para vê-la. Então,
certamente, ela não chegava a ser alguém para ninguém.
O que quer que
ela tenha feito ou sido durante seu tempo passado e já esquecido, o fato é que
agora Ana estava só. Não havia motivos para fugir; para sair do quarto branco e
sem vida para tentar encontrar fora daquelas paredes qualquer coisa que fizesse
mais sentido. Ela não saberia para onde ir ou por quem procurar. E se não
houvesse ninguém a procurar. Não havia ninguém a procurar num mundo imenso.
Como seria estar
só na imensidão? Talvez fosse muito pior do que este quarto; do que sentir-se
perdida num pequeno quarto sem cor. Ana voltou para a cama em silêncio e
deitou-se de costas para a janela e fechou seus olhos quietos. Não havia mais
porque chorar.