DOM CASMURRO
Ana colocara água morna, flores de
lavanda e camomila na bacia metálica e admirava as delicadas flores a tocar
seus pés de unhas vermelhas feitas. Ela queria aquecer um pouco os pés que
eram, indelicadamente, frios mesmo nas tardes de outono. João, depois de tanto
tempo, anos, uma vida inteira para ela lhe parecia, estaria mais uma vez ali;
no apartamento que um dia foi dele também.
Cassia Eller enchia a sala e a
varanda com sua voz enquanto vagavam os pensamentos e as flores à deriva. Porque
João viria visitá-la, Ana não sabia. Como não sabia o porquê dessas repentinas saudades
de ouvir repetidamente a voz de Cassia Eller. Ela se foi cedo demais. Ele também.
E muito provavelmente João ficaria pouco
tempo por aqui; um dia? Um par de horas, minutos talvez? Não importava.
Ele era seu menino, mesmo não o sendo
mais. Seu preto, o único por quem ela um dia tinha se perdido e permitido todos
os sentimentos sabidos e os desconhecidos também. João era um cometa. Para ela
ele era um acontecimento divino; mesmo conhecendo todos os defeitos que ele
tinha. Seus silêncios pesados e as inocentes mentiras; a falta de coragem que o
detinha.
Porém, como não perdoar todos os
defeitos de um homem tão delicado como aquele? Pensava a menina que já não o era.
João era, para ela, alguém muito forte que sempre se recusou, por gentileza e um
pouco de preguiça, a utilizar-se da força que tinha. Ele decidira ser uma flor
colorida e bonita ao invés de um monstro. Ele a encantara.
Há tanto tempo ele a encantara, homem-sereia,
com aquela voz. Tanto tempo passara sem que eles se vissem e não há motivos
para esse retorno agora. Tanto mudou. Tudo mudou. “Eu mudei tanto”, pensou uma assustada
Ana.
Ela tinha envelhecido e os cabelos
não eram os mesmos, nem as mãos. Ele também mudara e estava maior. Ela talvez diminuíra.
Porém, no chão da sala ao lado da bacia metálica ainda estavam as havaianas
descansando. E ela ainda gostava de ouvir música boa muito alta. Ela ainda se
arrepiava ao pensar nele.
Ah... Ana fechou os olhos sentindo os
pés mornos e o sol suave do fim de tarde no colo. Pensou em João. Em suas mãos
e suas pernas, nos seus dentes na carne dela... e o respirar dela ficou
difícil, gordo e apressado. Pensou na língua dele a passear e na língua dela a
vagar por todos os cantos e recantos...
Ela não sabia porque João havia
decidido que deveria vir vê-la. Talvez fosse o tédio tão comum à vida, talvez
quisesse algum favor ou apenas vinha buscar algo esquecido numa das gavetas do
quarto de dormir. Talvez... porém nada disso importava para ela. Não. Nada
importava porque apenas a ideia dele ali na sua frente a fazia sorrir. E isso,
isso era a única coisa que a ela qualquer sentido fazia.
Ana enxugara os pés que agora
descansavam no chinelo branco e mal eram vistos sob a saia do longo vestido
azul de flores miúdas. Vestido novo e que ela comprara porque lhe fazia sentir
o cheiro da primavera na praia. João gostava da primavera como ela. Tanto que o
humor dele melhorava com a chegada das flores e dos dias mais claros. João
sorria mais na primavera, e ela achou que o tal vestido seria bom para a
ocasião.
Ela estava abrindo a garrafa de vinho
quando soou a campainha.
“Oi, sou eu.” Disse um tanto cheia de
si a indefectível voz de João pelo interfone.
“A porta está aberta, sobe.” Disse Ana
num vagar manso.
A porta se abriu.
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