Sábado de Futebol
O despertador toca Led Zeppelin às 7 horas, e Black Dog desperta Lazaro. De um pulo o menino sai da cama mais do que acordado porque hoje é dia de futebol. Seu time está nas quartas de final, e ele é o atacante do time. Lazaro não vê a hora de marcar mais um gol. Campeonato da escola, tudo bem. Mas para Lazaro, e seus amigos com seus 12 anos, este é o momento mais importante da vida. Hoje seu pai vai assistir à partida e ele quer fazer bonito, quer mostrar que é bom mesmo.
-Hoje vou marcar um golaço. Pensa o menino enquanto escova os dentes e veste o uniforme preto e branco. E foi aí, enquanto escovava os dentes do fundo da boca, que Lazaro percebeu que sentia uma comichão nas costas. Era assim que seu avô chamava as coceiras chatas, e Lazaro achava maneiro o falar do avô. Lazaro espichou-se de lá pra cá, e deu uma de contorcionista para tentar ver o que o incomodava daquela maneira, porém não conseguiu ver nada ali, bem no meio das costas.
- Ah, deixa pra lá. Disse o menino para si mesmo. - Não é nada, e não dá para eu me preocupar com esta bobeira.
Lazaro desceu as escadas correndo, chuteiras nas mãos, e engoliu um copo de leite enquanto beijava seus pais que já esperavam por ele.
- Vamos? Disse ele.
- E o café da manhã? Retrucou-lhe a mãe.
- Como no caminho, estamos atrasados.
E lá se foram, a banana e o pão francês nas mãos do apressado garoto para frente da casa. Os pais o seguiram de pronto porque na verdade eles estavam também muito ansiosos.
- Hoje é dia de futebol. Pensou Carlos, o pai do menino.
Senhor Carlos, o Carlão, adorava futebol e Rock-and-Roll e, por isso, desde que o menino era um bebê pequeno estas duas coisas faziam parte da vida de Lazaro. O pai era fã dos Beatles, assim como a mãe, e de Led Zeppelin também. Ele tinha uma antiga loja de livros e discos que estava na família há muitos anos, desde a época de seu avô, o Senhor Emílio.
Lazaro adorava ajudar o pai e o avô na loja, mas ainda não sabia se seguiria a mesma profissão do pai: livreiro de vocação. Sim, isso de escolher aquilo que a gente vai ser não depende simplesmente do que se quer, não. Há a tal da vocação. E isso de vocação na terra onde vive Lazaro e sua família é tão importante e respeitado como uma lei. Em Santa Cruz, que se parece muito com qualquer outro país, as pessoas não decidem simplesmente o que elas querem ser; elas nascem com um dom e têm a obrigação de segui-lo. Não seguir a sua vocação, o seu coração, é quase um crime ali; uma aberração.
Ah! Há um outro detalhe importante neste país tão parecido com o nosso: em Santa Cruz a fantasia e a magia são tão reais como uma boa partida de futebol.
Lazaro e os pais chegaram à escola onde muitos dos amigos do menino já aguardavam. Os pais dirigiram-se para as arquibancadas enquanto o menino e seus amigos se preparavam para entrar em campo. Em minutos começaria a partida de futebol.
Depois do apito, o que mais se viu foram pernas. Pernas de menino correndo, feito loucas, sobre o gramado verde. Pernas e pés, escorregões e algumas trombadas, muita alegria e um pouco de frustração. Ou seja, uma bela partida de futebol. E assim, muitos minutos suados e corridos se passaram até que o juiz marcasse o final da partida depois de 90 minutos e 08 gols.
O jogo foi duro, o outro time não deu moleza, mas Lazaro e seus amigos estavam inspirados naquela manhã de sábado. O menino marcou dois gols, e seu time venceu por 5 X 3. Um jogão, como diria o avô. Lazaro estava muito contente, orgulhoso por ter jogado tão bem justo no dia que seu pai assistia à partida. Ele estava contente e sabia muito bem o que queria, pois sua vocação estava clara para ele: Lazaro seria jogador de futebol.
A Livraria
Depois da partida de futebol, o menino e seu pai haviam combinado ir até a livraria da família. Lá, um avô aflito, roedor de unhas, esperava pelas boas novas: o resultado da contenda. Senhor Manoel, o pai do pai de Lazaro, era grande fã e companheiro do neto desde sempre; desde antes do nascimento do menino. Isso se dera assim naturalmente, Lazaro sorria para seu avô ainda muito pequeno e o avô, avô de neto único, o amava tanto ou mais do que amava seu filho desde o momento em que soube que o pequeno chegaria.
- Mais um rapaz vem a caminho! Exclamou o senhor de óculos negros e quadrados e de farta barba grisalha assim que soube da gravidez. E não adiantaram as argumentações contrárias a tal certeza cega e teimosa. O avô já sentia o seu neto perto dele, sonhara com o menino e, sendo assim, nenhum exame era necessário para provar e comprovar aquilo que ele já sabia. Lazaro estava vindo.
A livraria localizava-se no centro da cidade, próxima aos correios e ao cinema que eram tão antigos quanto ela. O Ateneu, assim se chamava a casa de livros inaugurada há quase cem anos atrás pelo bisavô de Lazaro. Um lugar tranquilo e aconchegante, cheio de histórias dentro e fora das páginas dos livros que a habitavam por um tempo indeterminado. Havia dois andares unidos por uma escada de madeira cor de canela em forma de caracol. No andar de baixo ficavam os livros infantis, aqueles técnicos, as revistas e jornais, e aquilo a que o avô determinara como “a literatura assim-assim”. E sempre que dizia isso mexia a mão direita a mostrar a qualidade duvidosa das letras contidas ali.
E Lazaro achava graça daquilo, da cara de dúvida do avô.
No andar de cima ficava a poesia, pois de acordo com o vô Manuca, era desta forma que Lazaro aprendera a chamar o avô, as pessoas que leem poesia têm sempre a mente muito mais além, a voar nas alturas. Aquele andar também era a morada da grande literatura, dos clássicos, daquilo que era bom e, portanto, merecia um posto elevado e de maior consideração.
Pelas vitrines da livraria podia-se sempre avistar o avô, ou o pai de Lazaro, munidos de uma xicara de café quente e forte nas mãos a conversar com um cliente ou amigo. E foi isso mesmo que o menino avistou assim que desceu correndo do carro, tão afoito para contar ao avô a novidade que nem se quer fechou a porta dele ou ouviu o pai chamar-lhe a atenção pela falta.
- Vô! Saiu o menino em disparada pela calçada, acenando para que o avô o visse chegar. Entrou voando na livraria, como se tivesse asas, e estancou calado na frente do balcão frente ao olhar carrancudo do avô e do Senhor Geraldo.
Lazaro estranhava a cara séria do avô. Será que ele havia feito algo errado e não se lembrava? Ah, eram tantas as coisas que ele fazia todos os dias que não tinha tempo para lembrar-se de todas de repente. Porém, antes de dizer qualquer coisa, seu Manuca piscou para o neto e abriu seu sorriso macio de avô.
- Então, menino, desembucha logo, que estou que não me aguento. - Perdeu ou ganhou?
O neto se riu da piada do avô; ele o enganara direitinho. E correu para perto do avô para dar-lhe as boas notícias.
- Eu venci, claro, vovô. E gargalhou o menino orgulhoso, apertado pelo abraço igualmente orgulhoso do avô.
- Ah, o menino joga futebol, disso eu não sabia. Observou seu Geraldo com uma dúvida fingida. - Achei que seria livreiro como todos na família.
- Não, não senhor. Reagiu o menino. - Eu serei jogador de futebol, e dos bons.
Com o abrir da porta, Lazaro vê seus pais entrarem no Ateneu. Os dois cumprimentam ao senhor Geraldo e ao avô Manuca. Todos seguiriam juntos para casa depois de fechada a livraria. Hoje era dia de almoço em família, de muita conversa e música a tarde inteira.
E lá se vai uma tarde
O almoço foi gostoso e tranquilo. Hoje tiveram “puchero”, uma comida tradicional na família de Luiza, a mãe de Lazaro. Neta de espanhóis, Luiza se acostumara a ter na mesa e na língua falada em casa, aqui e acolá, uma pitada da Espanha.
Isso porque sua mãe, Dona Consuelo, sempre fez questão de ensinar a seus filhos muito da cultura do país que seus pais haviam deixado para trás. E o “puchero” era uma das tradições mais queridas por Lazaro. Sim! Mais do que as castanholas nervosas, o flamenco com seus sapatos falantes e braços de onda, mais do que as estórias que a avó Consuelo contava e, até mesmo, mais do que a forte língua espanhola; mais do que tudo que a Espanha inventou; Lazaro amava o “puchero”.
Uhm... Ele adorava aquilo! Um tipo de feijoada feita com grão de bico, linguiça, costelinha de porco e outras carnes, com batatas e outros vegetais. Ai ai ai..., só de pensar naquilo enxia de água a boca do menino! Além disso, adorava dizer aquele nome para seus amigos e ver a cara de estranhamento deles logo depois dele dizer:
- Ontem eu comi “puchero”. Dizia ele displicente, como se tivesse dito cachorro quente, apenas para ouvir um sonoro:
- Comeu o quê? Vindo da boca de um ou dois de seus amigos.
Hoje Dona Consuelo viera para o almoço em família e trouxera, feito por ela mesma, o prato preferido do neto. Depois da sobremesa, as duas meninas da casa, como dizia sempre o vô Manuca, iriam juntas visitar uma prima que andava meio doente. Lazaro lembra-se das palavras da avó: - Ela anda meio doentinha, coitada.
Aquilo fizera o neto pensar: - Como alguém pode estar meio doente? Pode apenas metade do corpo estar com algum problema enquanto a outra parte está bem que só? Cada coisa que a gente diz, não?
Assim que as mulheres saíram, os homens da casa foram para a sala da família; e isso incluía o nosso Lazaro que ainda era um homem-menino. Carlos e o Seu Manuca encaminharam-se para o canto do cômodo onde morava a coleção de discos para escolher o que mais combinava com a ocasião: O Campeonato de Futebol da Família no PlayStation. Seu Manuca queria ouvir algo mais leve e sugeriu Jazz para a ocasião.
- Que tal irmos de Dizzy e Charlie Parker, o Bird?
- Ah, não vô. Isso não combina nada com o futebol, afinal americano nem entende muito de bola. Reclamou o menino. - Eu voto em algo mais barulhento e divertido.
- Oras bolas menino. Quer dizer que Jazz não é divertido? Ela é, por acaso, uma música paradinha? Emburrou o avô. - Abra os ouvidos moleque, abra os ouvidos!
Carlos achava divertida a luta entre todos os anos que separavam avô e menino, mais de cinquenta afinal. E, às vezes, lhes era difícil chegar a uma solução que agradasse a ambos. Mas, sempre havia aquilo que todos gostavam afinal, então, sem consultar a ninguém, Carlos colocou os Rolling Stones pra tocar.
- Que tal para a ocasião? Perguntou um Carlos com seu sorriso curioso e brejeiro.
Palavra engraçada essa, não? Brejeiro. Mas assim era o sorriso de Carlão, com seu jeito alegre e irreverente. Apenas o filho não compreendia como aquela palavra não tinha nenhuma relação com os brejos. Ou será que tem? Afinal, brejeiro deveria ser aquele que cuida do brejo, não?
- Tá ótimo! Concordou o menino, que queria era começar logo a peleja entre família. Da última vez, por um milagre de Deus, seu Manuel foi o campeão. Coisa da qual Lazaro desconfiou muito, pois, como poderia aquele velhinho ser melhor do que ele e o pai no PlayStation? O menino achava que o pai havia deixado o avô ganhar, ou será que o danado do Manuca anda a praticar escondido?
- Concordo. Somou o avô.
E assim começou a tal disputa entre três gerações apaixonadas por futebol, seja o de campo ou o virtual. Os jogos foram disputados e divertidos e, depois de quatro horas, seu Manuca sagrou-se campeão pela segunda, e ainda mais inacreditável, vez.
- Ah, vô! Você anda treinando escondido, né? Aposto que nem anda trabalhando direito. Reclamou o menino.
Manuca e Carlão riram um riso solto do despeito do menino.
Lazaro estava mesmo acabrunhado, mas isso não apenas pela derrota para o avô. A verdade é que suas costas voltaram a incomodar, doendo um pouco. O menino sentia, outra vez, aquela comichão que sentira pela manhã.
- Que coisa chata. Pensou o menino sem dizer nada. Porque uma coceira não é nada que deva dar preocupação, e ele pareceria um menininho chorão se reclamasse das costas. E isso o garoto não admitia. Lazaro era um menino forte.
- Pai, eu vou subir para estudar, tá? Tenho lição de matemática.
- Certo. Respondeu o pai.
E assim sumiu o menino da vista do mundo por algumas horas. Ele e a comichão estranha teriam seus momentos de solidão.
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