quinta-feira, 4 de julho de 2013

O Fim



De repente encontrou-se velha no espelho como se a vida tivesse dado um salto de pernas milenares e gigantescas. Viu-se tranquilamente, apesar da novidade repentina da velhice, como se vê a uma antiga conhecida; como se visse a mulher que sempre soubera ser e que morava escondida por detrás de suas carnes vivas. Ana não compreendia como ocorrera tamanha mudança sem que ela a sentisse. Dormira um sono de anos? Desde quando deixara de perceber-se, de ver-se? Ana estava velha como tanto quis ser um dia, velha para além dos sentimentos, das lembranças e dos ressentimentos. Delicadamente seca e admirada despiu-se.

Nua, via-se pela primeira vez clara e verdadeiramente. Os ossos a marcar a pele seca e sem cor mostravam em seu contorno as arestas que ela cultivara e que se esconderam nas linhas suaves dos anos de menina e nas curvas preguiçosas dos anos de mulher. Não havia mais subterfúgios. Lá estavam as dores semeadas nas linhas da pele em traços profundos e resistentes de par com a dureza aguda expressa pelos ossos que gritavam sua existência antes pressuposta em sussurros. Os pelos e o cabelo minguavam tristonhos e pesados, desiludidos pela distância das mãos há tanto ausentes e já não eram capazes de cobrir os olhos sem luz cheios de realidade; cansados pela realidade que os invadiu por anos e anos. Apenas Ana sabia que seus olhos estavam mortos há muito tempo, e os escondia atrás dos cachos coloridos. Agora, seus olhos estavam tão nus quanto ela, tão explícitos quanto ela.

Ana vestiu-se. Vestiu uma roupa qualquer por não haver qualquer intensão de sair, de mover-se para além daquela solidão silenciosa e segura do apartamento. O conforto da velhice e do esquecimento havia chegado e ela podia descansar; podia desistir finalmente de tudo, do todo, de todos e, fundamentalmente, de si mesma. Naquele momento, ela percebeu que o vazio que a corroeu com suas angústias e o enjoo que ele causava a abandonaram. Ana estava em paz e podia deixar-se sem culpas, sem desculpas, sem necessidades de motivos para além dela para o que iria fazer. Ela podia sentar-se e esperar pelo fim breve, sem memórias e indolor.


A velha senhora, encarnada de sua falta de vida, dirigiu-se à janela fechada. Ana sentou-se lentamente e, da mesma maneira, pousou a fronte contra a vidraça para quieta despedir-se da vida; em silêncio, vazia. Contudo, um fio de pensamento a assombrava às portas de seu ato final - João. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário