De repente encontrou-se velha no
espelho como se a vida tivesse dado um salto de pernas milenares e gigantescas.
Viu-se tranquilamente, apesar da novidade repentina da velhice, como se vê a uma
antiga conhecida; como se visse a mulher que sempre soubera ser e que morava
escondida por detrás de suas carnes vivas. Ana não compreendia como ocorrera
tamanha mudança sem que ela a sentisse. Dormira um sono de anos? Desde quando
deixara de perceber-se, de ver-se? Ana estava velha como tanto quis ser um dia,
velha para além dos sentimentos, das lembranças e dos ressentimentos. Delicadamente
seca e admirada despiu-se.
Nua, via-se pela primeira vez clara e
verdadeiramente. Os ossos a marcar a pele seca e sem cor mostravam em seu
contorno as arestas que ela cultivara e que se esconderam nas linhas suaves dos
anos de menina e nas curvas preguiçosas dos anos de mulher. Não havia mais
subterfúgios. Lá estavam as dores semeadas nas linhas da pele em traços
profundos e resistentes de par com a dureza aguda expressa pelos ossos que
gritavam sua existência antes pressuposta em sussurros. Os pelos e o cabelo
minguavam tristonhos e pesados, desiludidos pela distância das mãos há tanto
ausentes e já não eram capazes de cobrir os olhos sem luz cheios de realidade;
cansados pela realidade que os invadiu por anos e anos. Apenas Ana sabia que
seus olhos estavam mortos há muito tempo, e os escondia atrás dos cachos
coloridos. Agora, seus olhos estavam tão nus quanto ela, tão explícitos quanto
ela.
Ana vestiu-se. Vestiu uma roupa
qualquer por não haver qualquer intensão de sair, de mover-se para além daquela
solidão silenciosa e segura do apartamento. O conforto da velhice e do
esquecimento havia chegado e ela podia descansar; podia desistir finalmente de
tudo, do todo, de todos e, fundamentalmente, de si mesma. Naquele momento, ela
percebeu que o vazio que a corroeu com suas angústias e o enjoo que ele causava
a abandonaram. Ana estava em paz e podia deixar-se sem culpas, sem desculpas,
sem necessidades de motivos para além dela para o que iria fazer. Ela podia sentar-se
e esperar pelo fim breve, sem memórias e indolor.
A velha senhora, encarnada de sua
falta de vida, dirigiu-se à janela fechada. Ana sentou-se lentamente e, da
mesma maneira, pousou a fronte contra a vidraça para quieta despedir-se da vida;
em silêncio, vazia. Contudo, um fio de pensamento a assombrava às portas de seu
ato final - João.
Nenhum comentário:
Postar um comentário