Os Ombros Suportam o Mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
Carlos Drummond de
Andrade
Amor de
tarde
Es una
lástima que no estés conmigo
cuando
miro el reloj y son las cuatro
y acabo
la planilla y pienso diez minutos
y
estiro las piernas como todas las tardes
y hago
así con los hombros para aflojar la espalda
y me
doblo los dedos y les saco mentiras.
Es una
lástima que no estés conmigo
cuando
miro el reloj y son las cinco
y soy
una manija que calcula intereses
o dos
manos que saltan sobre cuarenta teclas
o un
oído que escucha como ladra el teléfono
o un
tipo que hace números y les saca verdades.
Es una
lástima que no estés conmigo
cuando
miro el reloj y son las seis.
Podrías
acercarte de sorpresa
y
decirme “¿Qué tal?” y quedaríamos
yo con
la mancha roja de tus labios
tú con
el tizne azul de mi carbónico.
Mario Benedetti
Quero Escrever o Borrão Vermelho de
Sangue
Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.
Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.
Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder.
Clarice Lispector
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