quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

divagações

 


Os Ombros Suportam o Mundo

 

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.

E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

Teus ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

provam apenas que a vida prossegue

e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo

prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.

 

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Amor de tarde

Es una lástima que no estés conmigo

cuando miro el reloj y son las cuatro

y acabo la planilla y pienso diez minutos

y estiro las piernas como todas las tardes

y hago así con los hombros para aflojar la espalda

y me doblo los dedos y les saco mentiras.

 

Es una lástima que no estés conmigo

cuando miro el reloj y son las cinco

y soy una manija que calcula intereses

o dos manos que saltan sobre cuarenta teclas

o un oído que escucha como ladra el teléfono

o un tipo que hace números y les saca verdades.

 

Es una lástima que no estés conmigo

cuando miro el reloj y son las seis.

Podrías acercarte de sorpresa

y decirme “¿Qué tal?” y quedaríamos

yo con la mancha roja de tus labios

tú con el tizne azul de mi carbónico.

 

Mario Benedetti

 

Quero Escrever o Borrão Vermelho de Sangue

 

Quero escrever o borrão vermelho de sangue

com as gotas e coágulos pingando

de dentro para dentro.

Quero escrever amarelo-ouro

com raios de translucidez.

Que não me entendam

pouco-se-me-dá.

Nada tenho a perder.

Jogo tudo na violência

que sempre me povoou,

o grito áspero e agudo e prolongado,

o grito que eu,

por falso respeito humano,

não dei.

 

Mas aqui vai o meu berro

me rasgando as profundas entranhas

de onde brota o estertor ambicionado.

Quero abarcar o mundo

com o terremoto causado pelo grito.

O clímax de minha vida será a morte.

 

Quero escrever noções

sem o uso abusivo da palavra.

Só me resta ficar nua:

nada tenho mais a perder.

Clarice Lispector

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