segunda-feira, 2 de abril de 2012

Branca



Ana abriu os olhos sem vontade, sem coragem. Há dias está assim, tão vazia que não encontra motivos, razões úteis ou fúteis, para mexer-se da cama. Arrasta-se pelo mundo vazia sem a alma e a alegria que antes estavam ali. Talvez, e este é o mais amargo dos pensamentos, talvez nunca houvesse alma alguma a habitar o corpo. Somos carne, ossos, sangue; nada mais. Que sentido haveria então? Tudo não passara de uma falácia amorosa e criminosa; cruel. A vida não fazia sentido algum.

 Ela olhava a parede branca de perto. Olhos semiabertos e perdidos, úmidos e opacos pela falta do espírito que um dia ela, ingênua, acreditou estar dentro dela. O telefone toca mais uma vez. Há mensagens acumuladas desde ontem nele, e a única coisa que a mulher deseja é que a esqueçam deitada. Esqueçam que ela andou pelas ruas, que riu alto e cheio a risada daqueles que crêem. Daqueles que ainda não conhecem a vida como ela é. Que castigo era aquilo para ela. Aquela consciência aguda de sermos, todos nós, miseráveis ocos sobre esta terra. Ana vai até a secretária e apaga todas as mensagens, toma um copo d’água e perde-se sentada no sofá da sala. O dia está azul lá fora.

E assim, sem muito saber o porquê, inundam-se seus olhos tais açudes no verão. Tal açude, eles sangram. Choram pela tristeza de entender que ela, a mulher que os carrega, nunca compreendeu como era a vida. Que dela não havia de esperar tanta beleza e poesia, que nela não havia nada para além do que eles, os olhos, a vida toda mostraram para ela. Cega. Ana sempre foi cega para a realidade e ousou sonhar. E quis encontrar algum sentido na vida que não residisse no viver egoísta. Ingênua. Agora esta palavra lhe parecia a mais graduada das ofensas. Ela era ingênua.

Talvez devesse mesmo procurar os médicos. Seria uma boa idéia, talvez. Pensou a menina d’alma. Sim, meter goela abaixo comprimidos que apagassem toda a consciência e a melancolia que vivem nela poderia ser bom. Uma felicidade química; moderna. Uma mentira, um anestésico. Um estofo falso para o vazio branco que ela sentia no peito oco onde ecoavam batidas lentas de um coração sem motivos. Não. Tudo deveria ser assim: cru, sem subterfúgios.

Mais do que tudo, Ana repudiava as prudências demasiadas, os eufemismos cínicos que a todos pareciam tão caros. Nada de meias palavras, de acomodações pacíficas a uma falsa satisfação, nada da conformidade covarde agradava a ela. Isso não. A menina gostava dos mergulhos de cabeça no escuro, de escancarar a alma e deixar todas as emoções e palavras conhecidas entrarem; habitarem-na. Mesmo que o preço a pagar, por ser assim, fosse caro.

O telefone desobediente toca outra vez. E se for João? Poderia ser seu amor, por que não? Porque não. E mesmo que fosse ele a chamá-la para a vida, mesmo assim, de nada adiantaria. Ana perdera-se nos olhos verdes dele, e acreditou na verdade dos sentimentos que existem dentro da gente. Acreditou na poesia e na fantasia. Acreditou. Entretanto, agora nada mais fazia sentido, pois ela entendera,finalmente, que tudo não passara de uma branca mentira. Uma brincadeira egoísta.

 Ana levantou-se do sofá e apagou a mensagem que não ouvira sem o som do telefone mudo. Ela não queria ouvir voz alguma. Nem mesmo a voz daquele que ela aprendera a chamar com todo o carinho que conhecia. “Meu Preto.” Ana estava, silenciosamente, de alma perdida.


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