Bebê Hanen Tafish, de 11 meses, no necrotério do hospital Al Shifa , Gaza. (Mahmud Hams AFP)
Há alguns dias me sinto perdida,
sem saber para onde devo olhar todas as vezes que vejo novas estatísticas sobre
as mortes que ocorreram por estes dias. Estou cansada de ouvir estes números a
cada amanhecer, e já que não posso simplesmente fingir não ouvi-los, abrir os
olhos pela manhã tem sido doloroso. Sei que sempre houve e haverá gente a
morrer por motivos naturais ou não; de morte morrida ou de morte matada como dizemos
por aqui. Entretanto, isso de ver as pessoas se matando por aí como se isso
fosse mesmo parte da vida, algo corriqueiro e natural, não é plausível para
mim.
Entendo quando chega um furacão a
destruir muitos de nós, quando a terra sacode e se abre querendo nos engolir ou
quando um touro tem a sorte de, por instantes, vingar a todos os irmãos falecidos
e atinge de morte o toureiro. Nestas situações, sei para onde olhar e como me
sentir. Chego a compreender, de coração, a capacidade que temos de matar o outro
para salvar-nos ou para proteger a vida de um de nós. Sei que eu mataria por
minha família e por meus meninos, num arroubo irracional e violento, para
salvar-lhes a vida. Sei disso e compreendo porque o faria.
Agora, mesmo assim, como
compreender que alguém faça planos para matar a um outro alguém? Como entender
que se faça guerra por terras, por dinheiro e por poder? Como perceber as
razões que levam pessoas de uma mesma cidade a matarem-se sistematicamente
porque se pensam diferentes? Como podemos pensar que se fará justiça nesta vida
injustamente?
Sinto-me perdida ao ver esta luta
continua num mundo onde não há mocinhos e onde, ainda assim, somos todos nós
vítimas. Não há o certo e o errado, o bem e o mal; há apenas o sangue derramado,
o nosso sangue e o alheio misturados pelas ruas e pelas casas dessa aldeia que
depois de tanta evolução humana parece tornar-se mais e mais irracional com o
passar dos tempos.
Estou cansada e queria muito que alguém
pudesse me explicar a imagem que ilustra este texto. Eu não a percebo; e sinto,
com um pesar insuportável, que chorar por ela não muda nada por aqui. Há explicação para
algo tão cruel assim?
E quando
chega a noite eu conto os minutos à espera de um sinal por ténue que este possa
ser, um sinal da tua atenção. Porventura uma amostra de dedicação, assim o queiras,
assim a queiras dispensar. Uma mensagem que seja (pode ser curta, pode ser
mínima, desde que seja – e para isso basta um asterisco). Algo que revele
curiosidade, ou quem sabe, preocupação com o meu bem-estar. Algo que atenue o
desconforto que hoje sinto pela imitação da vida que vou levando sentado com um
sorriso na sala de estar. Eles riem pra mim. E eu vou anuindo cinicamente, ao
mesmo tempo em que penso no vestido negro do qual falaste, como se fosses uma
adolescente ansiosa pela sua primeira saída à noite.
Tenho saudades
tuas.
Saudades de alguém
que na verdade não conheço mas julgo entender. Melhor: tenho saudades de alguém
que, mais que tudo, eu quero que seja aquilo que o meu desejo idealiza ser. Suponho
que não o serás (não existe pessoa assim). Mas mostra-me esse vestido, tal como
prometeste, e já agora levanta-o até à coxa... eu prometo que não te chateio
mais. Pelo menos até a manhã chegar e eu realizar que acordei. Sozinho.
by Carlos Nobre em A Gramática da Paixão Dramática
Eu detesto ver pássaros em
gaiolas! Tadinho do bicho, ter o mundo inteiro para voar e não poder fazê-lo,
só para satisfazer o egoísmo dos que os querem para enfeite!
Conheci um senhor que tinha
dezenas deles, cada um na sua linda gaiolinha, no (pasmem!) porão da casa! Uma
vez por dia ele punha todas as gaiolas no quintal para o banho de sol. Uma vez
perguntei a este senhor se ele não tinha pena. Ele me respondeu que não, pois
tratava bem os pássaros, as gaiolas eram espaçosas e nunca faltava água nem
comida. Fiquei pensando o que ele acharia se o trancassem num quarto grande,
confortável, onde servissem boas refeições nos horários certos, mas nunca o
deixassem sair de lá...
Bonito mesmo é o pequeno jardim da casa dos
meus ex-sogros. Cheios de vasilhas com água e frutas, um doce agrado para
tantos bicos que lá vão passear todos os dias: sabiás, pardais, beija-flores,
que vão e vêm quando querem, livres. Dá pra ficar um tempão na janela da
cozinha, em silêncio, admirando e rindo com o beija-flor, valentão, que não
quer deixar os outros aproveitarem a farra, só ele.
Aqui no prédio ao lado havia uma
arara. Pensem numa sacada de 2 x 1 m. Nessa sacada a mente inteligente do dono
do bicho conseguiu fazer um cercadinho e colocar a pobre arara lá. Cansei de
vê-la tentando abrir as asas, em vão, porque o espaço não dava. Você pode dizer
que era só o barulho comum que as araras fazem, mas pra mim eram gritos de
desespero. Acionei as autoridades e depois de um empurra-empurra a Secretaria
do Meio Ambiente me disse que o dono da arara tinha autorização do Ibama, ou
seja a situação da arara ela legal. Legal pra quem? Ainda que fosse um bicho
que não tivesse mais condições de viver solto na natureza, deixá-lo viver
naquele cercadinho era a mesma coisa que decretar-lhe a sentença de morte. Mas
passados uns dias ela não estava mais lá... Será que conseguiram um espaço
maior ou ela não resistiu?
Não é bom demais ver uma revoada
de pássaros no céu? Aquele é o lugar que Deus pensou pra eles... E se Deus já
pensou a gente não precisava reinventar, não acham?
De repente, não mais do que de
repente, passou a fazer parte da rotina de São Paulo contar o número de corpos
deixados pra trás com balas neles alojadas. Recortes e recados de uma guerra entre
o bem e o mal, (ou entre o mal e o mal, ou entre o bem e o bem, tudo depende de
como se vê a questão), que nos faz sentir que estamos mais próximos da Síria ou
do Paquistão. E a grande Sampa, com seu povo vindo de todos os cantos do
planeta, tão gigantesca por natureza, me parece agora um tanto quanto apertada
demais, pequena.
Pequena ao ponto dos paulistas e
paulistanos não caberem mais nela. Hoje, apesar de a amarmos muito, do jeito
que se ama o lugar ao qual chamamos de lar, sentimos que nossa cidade deixa de
nos pertencer. São Paulo anda a escapar por entre nossos dedos; Sampa não é
mais daqueles que ali nasceram ou que resolveram adotá-la de coração. Não é
mais a nossa nação feita de retalhos desde o seu nascimento e que, por isso
mesmo, aprendeu a chamar de seu cidadão a qualquer imigrante ou estrangeiro que
nela decidiu viver.
Sempre me orgulhei do meu canto
por sentir que ele pertencia a todos que o aceitassem como seu; lugar de
portugueses, índios, italianos, espanhóis, japoneses e toda e qualquer nação. Casa
de brancos e negros, de heterossexuais e homossexuais, de hippies, “mauricinhos”
e de quem ama o rock. O lugar de católicos, judeus, árabes, budistas, filhos
de Olorun, de toda religião. Terra de todo tipo de gente que, desde a minha adolescência,
podia ser como quisesse ser e isso não era da conta de ninguém.
Contudo, há tanto tempo ignoramos
os problemas que estão sob o nariz, toda a falta que há por aqui. A falta de escola e educação, a falta de
respeito e consideração, a falta de transporte público e de condição, a falta
de amor, fraternal ou não, a falta de dignidade e de igualdade. Pois, então,
agora falta-nos, a todos nós, a liberdade para viver. Sampa não é mais de
ninguém.
E mesmo sabendo que a vida, por
melhor que seja, nunca será pura e completamente justa, temos que começar a nos
indignar com aquilo que já deveria ter-nos indignado há muito tempo. Devemos lembrar
que é um absurdo que a cidade mais rica deste país submeta a maioria de seus
cidadãos a algo que não podemos chamar de vida, e que haja tanta gente morando
na rua. Devemos nos revoltar com a inércia de um governo rico que, ao invés de
preocupar-se com o bem estar de quem mora aqui, preocupa-se apenas com sua
manutenção no poder e com seu enriquecer. Vamos lutar por uma solução, por mais
educação e para que não haja tanta gente crescendo no meio da violência, e não
por paliativos como a redução da maioridade penal. Porque, senão, a única coisa
que conquistaremos é mais gente na prisão. E vai faltar cadeia nesta nação.
A primeira coisa que eu vi quando
Diego nasceu foi sua mão de dedos muito longos e magros; mãos de pianista com
seus dedinhos de aranha bem branquinhos e impressionantemente longos para um recém-nascido.
Diego era, naquele momento, ainda muito parecido com seu irmão, o meu Pedro,
mas, ao mesmo tempo, aquele menino já dava mostras das diferenças e novidades
que nos mostraria durante a vida.
Nesta última quarta-feira,
sentada com ele na sala e com seu braço quebrado à altura do punho na minha
mão, lembrei-me desse momento: de seus dedos compridos a saírem para o mundo
como se quisessem tateá-lo. Dieguito nasceu em movimento. Hoje, aos 3 anos e
meio, ele já mostrou ao que veio. Ainda
muito branquinho e magrelo, com seu perfil longilíneo e dourado tal anjo torto,
nada rechonchudo ou tranquilo, este menino desafia a ordem das coisas e a
maneira como elas são e estão. Diego é movimento constante e uma personalidade
forte e desafiadora que parece não conhecer o significado da palavra sossego,
um menino feito de vento.
E lá estávamos nós: ele com dor
no braço que quebrara numa queda até rotineira no meio da sua correria diária,
e eu com dor na alma vendo seu braço antes reto agora quase a formar um esse na
minha mão. Foram poucos os minutos entre a queda e a nossa saída às pressas
para o hospital, entretanto, não houve como não sofrer por ver o meu Magrelo
ferido. E nestes momentos dá mesmo vontade de ser muito mais do que um ser
comum. Ser gente parece pouco demais. Dá vontade de ter superpoderes, de poder
consertar tudo, de voltar no tempo e de ter feito algo diferente para mudar o
presente. Mas, não há como voltar atrás, infelizmente.
Sei que logo a dor passará e que
Diego esquecerá tudo o que aconteceu neste Halloween desastrado. Ficará apenas
uma cicatriz que no futuro se juntará a outas a mostrar sinais de seu percurso
pela vida de menino a virar homem; e ainda há muito tempo pela frente. Tempo para
nos conhecermos mais e para aumentar e aprofundar este amor que hoje existe
entre nós; um amor que, ao oposto de tudo que Diego faz, nasceu lentamente para
durar para sempre.
Um beijo para todos que amo,
família e amigos. Um beijo especial para
o Diego que, mesmo sem o ser no papel, é meu afilhado de coração.