Ana acordara há alguns minutos, porém
ainda mantinha os olhos fechados. Como todas as manhãs, ela precisava de um
tempo, meia hora, para acostumar-se à vida. Com a consciência vinham as
dúvidas, os questionamentos, e a realidade impunha-se. Levava sempre um certo
tempo para lembrar-se onde estava, quem era e o que a vida esperava dela.
Ultimamente sonhava com a possibilidade de acordar velha. Seria muito bom
despertar aos cem anos sem quaisquer expectativas. Seria tranquilo e bom não
precisar mais preocupar-se com coisa alguma, nem mesmo com ela. Aos cem anos,
Ana acreditava que já não seria mais necessário encontrar finalidade alguma
para a vida. Ela estaria, irremediavelmente, a terminar. E a ideia do fim lhe
trazia um consolo pesado.
Abriu os olhos e viu-se ainda jovem
demais para esperar o fim. Fechou-os com a luz insistente que entrava pela
janela aberta e sentiu, ao abrir a boca, uma dor fina vinda do canto direito do
lábio inferior. Passou lá a língua e o gosto salgado e suave de sangue fez com
que ela levasse a mão à boca. Não se
lembrava daquela ferida. Sentou-se na cama, e sentiu o liquido morno a descer
lentamente pelo queixo. Arrastou-se até o banheiro, para o espelho. Sim, lá
estava a ferida. Pequena e insípida demais para que trouxesse qualquer
preocupação, como tudo mais lhe parecia agora na vida. Mas como e onde ela a
havia feito? Simplesmente surgira? Não
se lembrava de dor alguma na noite anterior. Da ferida.
Depois do banho e de vestir-se, saiu à
rua. Tinha que lá estar, não por vontade própria, mas por obrigação. Pela
inércia obrigatória que estar viva lhe impunha. Para fingir-se adequada e
normal, para ganhar dinheiro, para pagar as contas, para parecer um ser
responsável, para impedir-se de simplesmente gritar até que todo o ar de seus
pulmões chegasse ao fim.
O dia estava cinza, frio o bastante para
que as pontas dos dedos, mal-humorados, se ressentissem da obrigação de estar
na rua. Dia de garoa fina e magoada, de botas e ombros encolhidos. Dia banal. Ana
caminhou até o metrô sem pressa. Via, como quem prestasse qualquer atenção, as
pessoas e as coisas a passar por ela. Via as coisas misturadas às pessoas, e
tudo parecia-lhe igual. Igualmente sem sentido. Nada tinha sentido. Ela não
tinha sentido algum, e percebeu que aos olhos dos outros era, ela também,
qualquer coisa; uma coisa. Algo que transitava entre a parede cinza e os
trilhos do metrô e que se ficasse quieta, bem quieta, ninguém perceberia.
Então, chegaram até ela a luz e o som
que caminham mais rápidos que os vagões cheios de gente. Vinha o comboio a
desacelerar-se diante de seus olhos, indiferente. E abriram-se as portas,
rotineiras. Como se abrem todos os dias milhões de vezes. Abriram-se. Os olhos
de Ana, indiferentes até aquele instante, pela primeira vez enxergaram o que
naquele momento mais ninguém via. No vagão, encostado na parede dos fundos,
fones nos ouvidos e sem enxergar o mundo, estava João. De repente, sem aviso,
nos olhos de Ana choveu torrencialmente, enquanto as pessoas iam e vinham feito
coisas. As pernas não souberam para onde ir, e ali se quedaram até que as
portas, como fazem todos os dias, se fechassem novamente. O sangue voltou a
correr pelo canto direito da lábio inferior enquanto o comboio partia.
Noooossa, que lindo o texto!!! E a ferida volta a sangrar como o coração que sente. Amei a leitura!!!^^
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