Grupo Corpo - 2019 Gil |
O Corpo e Gil
O Grupo Corpo de
dança nasceu em 1975 e à época eu nem sabia que era gente ainda. Meu mundo era
tão grande quanto os limites de minha casa, que me parecia muito maior do que
realmente era, a escola em meu primeiro ano fora dos limites domésticos
sozinha, e os lugares aonde íamos em família. A dança moderna brasileira e eu
estávamos a descobrir quem éramos e a que mundo pertencíamos.
Não me lembro de
quando foi a primeira vez que vi o grupo Corpo no palco e nem qual foi a peça
vista. Lembro-me, lá pelos 16 anos, de ir assistir a uma aula aberta para nós no
teatro antes de um dos espetáculos porque minha ex-professora de Ballet,
Solange Cordeiro, fazia parte do grupo então. Não foi a primeira vez que estávamos
tão perto de bailarinos profissionais, mas já então, quase final do anos
oitenta, o Grupo Corpo impunha respeito e admiração por sua modernidade e pela
identidade de seus movimentos únicos. O Corpo trouxera Minas Gerais, nossas
heranças indígenas e africanas e a identidade brasileira para o mundo da dança.
Lembro-me, porém,
como se fosse há poucos dias, do espanto e do encanto de assistir à Missa do
Orfanado em 1989 no Teatro Municipal de São Paulo. Eu tinha 18 anos, e o Corpo
no palco mostrava que tinha se tornado gente grande de verdade; como nenhuma
companhia brasileira o fizera até o momento. Assim que as cortinas abriram e a
música de Mozart começou como um lamento, bailarinos dramáticos e precisos,
sentidos, fizeram com que a minha respiração parasse por alguns instantes. Meus
olhos não acreditavam no que viam e minha alma foi alcançada como nunca antes
durante um peça de dança. Fui engolida, absorvida, pelo Corpo e sua Missa do
Orfanato dentro do teatro.
Desde então, assistir
a uma peça do Corpo é algo a ser celebrado e a ser esperado com todas as expectativas
que o encanto pode trazer. E, a bem da verdade, muitas outras vezes fui
surpreendida e encantada pela beleza, a força e a carga emocional das
coreografias apresentadas por Rodrigo Pederneiras. Seus movimentos são únicos e
traduzem a dança natural e ancestral dos corpos brasileiros. E, por isso, ele é
genial.
Nessa semana,
mais de 30 anos depois de meu primeiro espetáculo do Corpo, assisti à Gil, a nova
coreografia do grupo, com olhos muito atentos, e a esperar muito de uma peça
que traz meu grupo de dança nacional mais querido dançando a obra de Gilberto
Gil. E é fato que criar muitas expectativas não é algo muito bom, pois, via de
regra, algumas das tais são sempre frustradas porque a realidade jamais será
aquilo que fantasiamos que ela deveria ser.
Gil é belo, tem
música luminosa, os bailarinos estão excelentes como de costume e a assinatura
já tão conhecida por nós lá está: os movimentos coreográficos típicos do Grupo
Corpo em toda a sua essência e clareza. Contudo, faltou-me o espanto já tão típico
depois de assistir a um novo trabalho. E isso deu-me nós na cabeça. Estariam a
estética e seu repertório do grupo já exauridos depois de tantos anos? Já assisti
ao Corpo vezes demais para dever esperar ser surpreendida por eles?
Depois de alguns
dias, pensando no que vi, sinto que em parte tudo isso é verdade. Estou realmente
muito acostumada à dança deste grupo mineiro que tornou-se já um clássico da
moderna dança do meu país. Porém, mais do que algo repetido, Gil trouxe a essência
da dança do Corpo de forma pura. Influenciados pela dança de Xango, o orixá, e
a música de Gil, vi um Corpo dançando conectado à terra e às nossas raízes numa
coreografia cheia de ritmo e leve, com gosto de doce de leite e tambor; avessa
aos grandes malabarismos ou efeitos cenográficos.
O novo
espetáculo do Corpo parece simples, fácil de ser dançado; despretensioso mesmo.
Porém, quando ele acaba, nos parece que os tais 40 minutos não passaram de 20
ou trinta minutinhos corridos. Gil flui como os riachos, sem grandes quedas e
assombros, e nos envolve mais do que nos damos conta. É ensolarado, alegre e
suave como o músico que representa.
Pois, depois de
alguns dias, e da confusão inicial que me apareceu na cachola assim que as
cortinas foram cerradas, percebo e sinto que gostei muito mais do tal Gil do Corpo
do que consegui entender num primeiro momento. E cá estou, surpreendentemente,
surpresa pelo Corpo mais uma vez.
Grupo Corpo - Gil |
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