Questões
educacionais
MAFALDA É REPROVADA NO ENEM
De Laerte a Ferreira Gullar, de
Chico Buarque a Madonna – o que diziam as questões que o governo Bolsonaro
censurou em 2019 no Exame Nacional do Ensino Médio
Luigi Mazza in Revista Piauí
18 nov 2021_11h49
Mafalda, personagem de quadrinhos
criada pelo cartunista argentino Quino, é um sucesso conhecido no mundo inteiro
e traduzido em mais de 20 países. Em conversas com a mãe, com o pai e com os
amigos de escola, a menina expressa seu inconformismo diante do mundo. Numa
dessas tirinhas, publicada originalmente cinquenta anos atrás, Mafalda, prestes
a entrar para o jardim de infância, nota que sua mãe está apreensiva com a nova
fase na vida da filha. Por isso, Mafalda tenta tranquilizá-la: “Sabe, mamãe, eu
quero ir para o jardim de infância e estudar bastante. Assim, mais tarde não
vou ser uma mulher frustrada e medíocre como você!” A mãe fica desolada e
Mafalda sai andando, feliz. “É tão bom confortar a mãe da gente!”
Famoso, esse diálogo entre
Mafalda e sua mãe não agradou a uma comissão montada pelo governo Bolsonaro
para avaliar as questões que seriam aplicadas na versão 2019 do Enem, o Exame
Nacional do Ensino Médio. “Gera polêmica desnecessária”, concluiu a comissão,
ao justificar por que decidiu censurar a questão que trazia a personagem
argentina.
Naquele ano, atendendo aos
desejos do presidente Jair Bolsonaro, o então presidente do Inep, Marcus
Vinícius Rodrigues, montou uma equipe para analisar ideologicamente as questões
do exame. O grupo, composto por um procurador de Justiça, um diretor do Inep e
um ex-aluno de Ricardo Vélez Rodríguez, então ministro da Educação, se reuniu
ao longo de dez dias em março de 2019 e usou carimbos de “sim” e “não” para
aprovar ou rejeitar questões. Ao final dos trabalhos, eles excluíram 66
questões da prova, sem consultar a equipe técnica do Inep, que já havia
aprovado todos aqueles itens. Numa planilha de Excel, os censores apresentaram
justificativas sucintas – e mal explicadas – para suas escolhas.
Como a comissão só usou três
palavras, não fica claro o motivo de terem achado “polêmica” a tirinha de
Mafalda. É possível deduzir que ficaram incomodados com uma interpretação
feminista da história em quadrinhos. Também não se sabe mais detalhes da
questão. Nenhuma das perguntas foi divulgada. Isso porque elas não foram
deletadas do Banco Nacional de Itens; elas apenas não foram utilizadas na prova
daquele ano. No futuro, essas questões poderão aparecer no Enem, e, por isso,
precisam permanecer em sigilo.
A Piauí, no entanto, teve acesso
a um documento até hoje não divulgado em que servidores do Inep pediram a
reabilitação de parte das questões censuradas em 2019. Esse contraparecer,
ainda que não revele todo o conteúdo das perguntas, permite saber os assuntos
que incomodaram o governo, assim como as alegações usadas para retirá-los da
prova. Os servidores responsáveis pelo Enem pediram que 38 das 66 questões
fossem reabilitadas ou reconsideradas, e concordaram com a exclusão de 28
itens. O contraparecer até hoje não foi avaliado pela presidência do Inep. Com
isso, as questões censuradas, embora ainda pertençam ao banco de itens, estão
num limbo: não estão totalmente descartadas, mas também não podem ser
utilizadas até que haja uma nova decisão.
Os registros de 2019 talvez ajudem
a elucidar o que o presidente Jair Bolsonaro quis dizer, na última
segunda-feira (15), quando afirmou que o Enem deste ano terá “a cara do
governo”. A prova será aplicada nos próximos dois domingos, dias 21 e 28 de
novembro, em meio a uma crise sem precedentes no Inep, que levou 37 servidores
a entregarem seus cargos. Eles acusam o atual presidente do instituto, Danilo
Dupas, de assédio moral, de desrespeito às decisões técnicas dos servidores e
de interferência indevida no exame.
Assim como Mafalda, a cantora
Madonna foi censurada no Enem de 2019. Uma questão da área de linguagens usava
a letra da música Papa Don’t Preach para falar de gravidez na adolescência. Na
música, Madonna interpreta uma adolescente que confessa para seu pai que está
grávida. “Gera polêmica desnecessária”, disseram novamente os censores. Essa
foi a justificativa mais usada de todas: serviu para excluir 28 questões da
prova.
No contraparecer, os servidores
responsáveis pelo Enem pediram que a questão fosse reabilitada. Explicaram que
a música ajuda a explorar “as tensões associadas ao contexto” da gravidez
adolescente, e que a questão utiliza os conhecimentos de língua estrangeira
“como meio de ampliar as possibilidades de acesso a informações, tecnologias e
culturas”. Argumentaram em vão, já que até hoje a questão continua barrada no
banco de itens.
Outras seis questões foram
censuradas por fazerem referência à ditadura militar. Uma delas citava o poema
“Maio 1964”, escrito por Ferreira Gullar, que fala sobre a violência e as prisões
políticas ocorridas nas semanas seguintes ao golpe. “Mas quantos amigos presos!
/ quantos em cárceres escuros / onde a tarde fede a urina e terror”, diz uma
das estrofes. No gabarito desse item constava apenas que a poesia tratava do
“contexto em que o Brasil se encontrava após o golpe militar”. A comissão de
censura do Inep, ainda assim, decidiu excluir a questão do exame. A
justificativa? “Descontextualização histórica do texto.”
A suposta “descontextualização
histórica” também foi usada pelos censores para excluir uma pergunta que se
baseava num poema de Paulo Leminski e tratava da ditadura. Uma outra questão,
que citava uma letra de música escrita por Chico Buarque (não se sabe qual),
foi censurada com a seguinte explicação: “Leitura direcionada da história /
Sugere-se substituir ditadura por regime militar.” Os servidores pediram que a
exclusão fosse revista.
Em alguns casos, os servidores –
talvez sabendo que não poderiam comprar todas as brigas – aceitaram os
argumentos dos censores. Na questão que falava de Ferreira Gullar, eles
concordaram que o gabarito era inadequado porque, segundo eles, o poema revela
o “sentimento” de Gullar, “mas não necessariamente esse texto revela o contexto
brasileiro”. Também foi censurada uma questão sobre a prática de tortura pelos
militares. Ao consentir com a exclusão da pergunta, os servidores comentaram:
“Um instrumento que apresente itens que se refiram apenas a um lado da história
se mostraria inadequado e polêmico.”
Não foram poucas as charges
barradas na prova do Enem. Uma delas mostrava uma pessoa na igreja, se
confessando para um padre. “Padre, eu pequei”, diz o personagem. O padre,
sentado em frente ao computador, acessando o Facebook, responde: “Eu já sabia…”
A religião não era o assunto central da questão. Na avaliação pedagógica feita
pelos servidores, o item “provoca o estudante a analisar criticamente e lançar mão
de outros recursos linguísticos”. Ainda assim, a comissão de censura excluiu a
questão, dizendo que ela “fere o sentimento religioso”.
Charge censurada no Enem em 2019
— Crédito: Reprodução/Autor desconhecido
A mesma justificativa foi usada
para censurar uma poesia de Manoel de Barros, usada em uma das questões. A
partir da descrição feita pelos servidores, pode-se deduzir que se tratava do
poema VII, de O Livro das Ignorãças, em que Barros faz alusão à Bíblia: “No
descomeço era o verbo”, diz o primeiro verso do poema, numa referência ao
Gênesis. Diante dessa heresia, os censores excluíram a questão e justificaram:
“Fere sentimento religioso e a liberdade de crença.”
A comissão de censura do Inep
usou a palavra liberdade para proteger sentimentos religiosos. Mas ignorou-a ao
excluir da prova de ciências humanas uma charge da cartunista Laerte que,
segundo o registro dos servidores, propunha uma “reflexão crítica sobre o
reconhecimento à diversidade na sociedade contemporânea”. Ao censurar a charge,
a comissão fez o seguinte comentário: “Leitura direcionada da história /
Direcionamento do pensamento.” Ao excluir uma outra questão, dessa vez na prova
de matemática, os censores do Inep foram além: disseram que o item “gera
polêmica desnecessária em relação à ideia de casal”.
Não faltam exemplos exóticos. Uma
outra questão, dessa vez na prova de ciências da natureza, falava sobre os
cuidados com relação ao vírus HIV e afirmava que o uso de camisinha é “o meio
de prevenção mais barato e eficaz” contra a Aids. “Gera polêmica desnecessária
/ Direcionamento do controle de saúde”, assinalou a comissão de censura do
Inep. Na mesma toada, foi excluída uma questão que falava sobre a proliferação
de doenças. O item explicava que a hanseníase tende a se espalhar com
facilidade em presídios no Brasil, devido à superlotação e às condições
precárias em que vivem os presos. “Gera polêmica desnecessária em relação ao
sistema penal”, disse a comissão.
Nem mesmo uma questão sobre
agricultura escapou à caneta dos censores. Ao se deparar com uma charge sobre a
produção de milhos transgênicos, os bolsonaristas não titubearam: “Gera
polêmica desnecessária em relação à produção no campo.” A questão foi excluída.
A comissão de censores foi fiel
ao pensamento de Bolsonaro. Questões sobre escravidão, violência policial ou
movimentos sociais foram parar na gaveta em 2019. Três questões que falavam de
“conflitos sociais” foram excluídas do Enem com a alegação de que faziam
“leitura direcionada da história” (essa justificativa foi usada para censurar
19 itens). Um item que falava sobre a abolição da escravatura e a “persistência
das condições precárias dos pobres negros no Brasil” foi excluída da prova
porque, segundo a comissão, houve uma “descontextualização histórica do texto”.
Uma outra questão que falava sobre segurança pública mencionava, em uma das
alternativas de resposta, a violência da polícia na Bahia. Por isso, também foi
censurada. “Ofensivo à força policial baiana”, explicou o trio de censores.
Discutir feminismo foi proibido
na prova. Uma questão de ciências humanas que falava sobre a Marcha das Vadias,
mostrando uma foto de mulheres de sutiã durante uma manifestação do grupo, foi
barrada por gerar “polêmica desnecessária”. Outra questão que debatia a
maioridade penal foi excluída do exame. “Gera polêmica desnecessária a favor da
não redução da maioridade penal”, escreveu a comissão de censura, alinhada com
o pensamento do presidente. Naquele ano, Bolsonaro pressionava o Senado para
aprovar um projeto que reduzisse a maioridade penal para crimes hediondos, uma
velha bandeira de campanha.
Também houve cuidado com os
assuntos de política externa. Uma questão da área de ciências humanas que
falava sobre as relações entre o governo Donald Trump e Israel foi cortada do
exame. A justificativa da comissão de censura foi a seguinte: “Leitura
direcionada da história / Interferência desnecessária na soberania de outro
país.” Já uma pergunta que falava sobre a Liga das Nações e a “implantação da
sociedade judaica na Palestina do início do século XX” – tema relevante para
uma prova de ciências humanas – foi excluída porque, segundo a comissão, fazia
“leitura direcionada de geografia / história”.
Os censores fizeram questão de
mostrar sua preocupação com a juventude. Excluíram da prova uma questão de
ciências da natureza que versava sobre o canibalismo entre animais. “Induz o
jovem a comportamento antissocial”, justificou a comissão de censura do Inep.
O governo também garantiu que não
se falasse sobre armas de fogo no Enem. Na área de linguagens, um texto falava
sobre uma tragédia ocorrida em 2013, na cidade de Burkesville, nos Estados
Unidos: um menino de 5 anos disparou acidentalmente um fuzil que havia ganhado
de presente e matou sua irmã mais nova dentro de casa. O objetivo do item,
segundo os servidores, era discutir o risco existente “em ambientes domésticos
em que há a possibilidade de acesso à arma por crianças”. Mas a comissão de
censura do Inep não achou que o tema deveria ser apresentado aos 5,1 milhões de
alunos que se inscreveram no Enem em 2019. A questão foi banida da prova sob a
alegação quase onipresente nas justificativas dos censores: “polêmica
desnecessária.”
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