quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Sorvete de Chocolate

 

Meu Pedro (e o chocolate)

Numa tarde de primavera, numa terra onde sempre é verão, estava eu como muito me agrada: estirada numa cadeira a ler um bom livro à beira da piscina, feito lagarto ao sol. Pensava o quão bom era aquilo, meu prazer egoísta e solitário, quando olhei para o lado e vi aquela cena que fez com que meus olhos se perdessem e esquecessem-se das páginas de Manoel de Barros mornas pelo sol. Pedro tomava sorvete de chocolate.
Sei muito bem que uma criança de 4 anos a tomar sorvete de chocolate não chega a ser lá um feito notável para esta nossa humanidade tão afeita às novidades que nos inundam diariamente. E, certamente, vossas cabeças já se perguntam: que besteira melosa esta madrinha tão rendida aos encantos do pirralho vai nos contar?  Eu sei. Entretanto, lá estava ele, tão absorto naquele seu prazer incontestável com sua carita a mostrar que nada, nada mesmo, passava em sua mente. Estava, meu Pedro, totalmente entregue a seu prazer, sem que  ele pensasse, questionasse ou duvidasse, por um segundo  que fosse somente, da perfeição daquele momento. Um ser totalmente entregue ao prazer de tomar um bom sorvete numa tarde quente.
Então, veio-me a inveja daquela pureza e clareza de sentimentos, vieram-me as palavras de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) em a Tabacaria:
(Come chocolates, pequena; Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
 Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
 Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Enquanto Pedro tomava seu sorvete o Mundo deixou de existir para ele. Vi isso em seus olhos, em sua boca, em toda a expressão da face e nos movimentos que braços e mãos ávidos faziam naqueles minutos nos quais a cena se passou diante destes meus olhos que, infelizmente, pertencem a um corpo que pensa sempre. Um corpo que é capaz de preocupar-se com a perfeição dos movimentos e, por isso mesmo, esquece-se do prazer que é dançar. Um corpo que julga a qualidade do que vê, do que come, do que cheira e do que sente tão constante e seriamente que esquece a simples e intensa satisfação que toda visão, todo sabor, todo cheiro e todo e cada sentimento tem para nos dar.
Não consegui evitar a idéia que então ficou, irônica e impura a martelar a mente: O pensamento realmente turva a verdade e atrapalha nossos mais puros sentimentos. Como loucos, criamos teorias a respeito do que vamos comer, deixamos de dizer o que nos manda o coração porque nos freia a mente e, como críticos de nós mesmos, julgamos nossas reações e, com medo do julgamento alheio, as escondemos. E, para que? Por quê?
Senti saudade desta clareza e verdade que um dia já foi minha também e deu-me, cá no peito, uma doce inveja do meu pequeno. Por isso, sempre que posso, quero estar com meus sobrinhos e afilhado para ter, como nesta tarde iluminada, amostras do que é aproveitar a vida verdadeiramente.
Um beijo muito melado e um abraço exagerado, que hoje é dia de fazer tudo sem freios. Boa semana!

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