A vida sem música é inconcebível. E há canções que mais que nos acalentarem, nos traduzem e nos tornam parte de um mundo sonoro e amplo. Assim, não nos sentimos tão sozinhos, e nada originais. Que bom!
Vai, minha tristeza, e diz a ela Que sem ela não pode ser Diz-lhe, numa prece, que ela regresse Porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade, a realidade é que sem ela Não há paz, não há beleza É só tristeza e a melancolia Que não sai de mim, não sai de mim, não sai
Mas, se ela voltar, se ela voltar Que coisa linda, que coisa louca Pois há menos peixinhos a nadar no mar Do que os beijinhos que eu darei na sua boca
Dentro dos meus braços Os abraços hão de ser milhões de abraços Apertado assim, colado assim, calado assim Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim Que é pra acabar com esse negócio de viver longe de mim Não quero mais esse negócio de você viver assim Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim
Nesta semana, mais precisamente no
dia 19 de Outubro, Vinicius de Moraes completaria 100 anos de vida, e tal
idade, nos dias de hoje, já não nos parece tanto assim, pois não? Fato que me
deixa ainda mais magoada com a partida dele, um tanto prematuramente para mim, no
dia 9 de julho de 1980. Será que Deus não poderia ter sido mais generoso
conosco e ter deixado o poeta mais tempo entre nós? “Que maçada!” diria o português.
Pois que eu, ainda muito menina, já era grande fã no final dos anos 70 e fiquei
para lá de chateada com a morte do homem que fizera poesia que me fazia rir e
cantar.
Lá vem o Pato Pata
aqui, pata acolá Lá vem
o Pato Para
ver o que é que há.
Apaixonei-me por ele com a Arca de Noé, poesia para crianças
e, ainda hoje, acho demasiado injusto isso dele ter se ido para versar no céu.
Numa época em que ainda não havia a chatice do politicamente correto e a falta
de educação dos dias de hoje, Vinicius, de uísque à mão e cigarro entre os
dedos, foi a Xuxa da minha geração. Eita infância boa, não? Lembro-me ainda da
fascinação de ouvir pela primeira vez o poema A Casa e tentar, durante
toda a infância, imaginar como seria a tal moradia sem chão ou paredes e que,
apesar disso, tinha sido feita com muito esmero na rua dos bobos, número zero. Agora,
ouvindo novamente o poema feito em canção, aperta-me o peito, inundam-se os
olhos. Que saudade da infância com Vinicius de Moraes...
Lembro-me também que diante de meus olhos pousou-se o Soneto
de Separação no primeiro semestre da Faculdade de Letras. Minha
primeira análise de uma poesia a sério e “valendo nota” donde deveriam sair
cinco laudas. Lembro-me que eu só pensava: “Deus meu, como escrever cinco
laudas a partir de 14 versos, distribuídos em 2 quadras e 2 tercetos com os
tais dos abba/abba/cdc/cdc?”. Felizmente as tais laudas saíram, e mais
felizmente ainda, hoje sei que poesia não deve ser vista como uma fórmula ou
analisada como se fosse uma expressão da matemática, ou coisa lá da gramática.
Coisa que Vinicius, que sempre deu de ombros aos louros e às formalidades bem o
sabia; poesia é feita para encantar-nos, para ser sentida e para significar
muito, muito mesmo, em pouquíssimas linhas.
Soneto de separação
De repente do riso fez-se
o pranto
Silencioso e branco como
a bruma
E das bocas unidas fez-se
a espuma
E das mãos espalmadas
fez-se o espanto.
De repente da calma
fez-se o vento
Que dos olhos desfez a
última chama
E da paixão fez-se o
pressentimento
E do momento imóvel
fez-se o drama.
De repente, não mais que
de repente
Fez-se de triste o que se
fez amante
E de sozinho o que se fez
contente.
Fez-se do amigo próximo o
distante
Fez-se da vida uma
aventura errante
De repente, não mais que
de repente.
Ainda hoje admiro
a Vinicius não apenas por sua obra em si, mas também pela sua capacidade de
tornar algo normalmente distante e feito apenas para poucos, como o é a poesia,
em algo que encantou a todos nós, dos mais miudinhos como eu aos seis ou sete
anos de idade com a sua Arca poética ou ao Mundo inteiro dos adultos com a tal Garota
que passava pela orla de Ipanema. E tenho certeza que a música de meu país deve
a ele muito de toda a qualidade e beleza que encontramos nas letras que dão voz
a música brasileira. Vinicius foi grande.
Sei que por
muitos motivos muitos creem que o meu Vinicius não se compara aos outros
senhores da poesia nativa - os grandes poetas brasileiros, e que um Bandeira,
um Melo Neto e um Drummond têm um peso muito maior na história da nossa
literatura; eu sei. Entretanto eu sei, também, que ele foi capaz de escrever versos
simples, singelos, tão fortes e verdadeiros, tão possíveis de serem sentidos e
compreendidos que ficaram imediatamente, e para todo o sempre, no coração de
toda a gente que, um dia, colocou seus olhos neles. Um viva pro Vinicius: Viva!
Noutro dia li algo que me trouxe
um desconforto diferente, novo. Numa placa no meio de uma praça em Montevideo
lia-se: “Me estoy felizmente desacostumbrando de mí.”. Pensei o quão bom seria
se, por apenas alguns dias de vez em quando, pudéssemos nos esquecer de quem
somos; esquecer tudo que nos incomoda, estorva. Sei que este não é o significado
da frase em si, mas foi o que me veio à mente.
Veio-me porque a tal frase
remeteu-me a algo dito há quase um ano atrás por alguém muito importante para.
Disse-me, um tanto indiretamente, que meu problema era querer encontrar alguém
nesta vida que me salvasse de mim mesma. E dá-me uma raiva ainda lembrar-me
disso como se fora dito ontem. Por que eu não me esqueço das coisas? Por que,
simplesmente, não as deixo para trás? Eu seria tão mais feliz se tivesse esta
capacidade camaleônica de transformar-me de maneira mais rápida. Seria tão bom
acostumar-me com uma nova versão de mim mesma.
Pois, um ano depois ainda custa-me
caro aguentar-me como sou: uma composição irônica de sonhadora-teimosa com
direito a veia dramática e etecetera e tal. E a ideia de movimento que a frase
da praça preconiza parece-me à tábua de minha salvação particular. Quão bom
seria eu desacostumar-me de quem sou e, por isso, ser capaz de ser outra e
poder, verdadeiramente, mudar. Seria realmente muito bom.
Isso não quer dizer que não haja
nenhuma mudança, claro que não. Ela existe constante e determinada, mas não
profunda o bastante para tornar-me outra; como não ocorre com quase ninguém,
penso eu. Mudamos na velocidade de lesmas preguiçosas, e uma vida constitui
pouco tempo para muita coisa. Isso também não quer dizer que eu arrependa-me de
tudo que fiz na vida, claro que não 2. Não me arrependo. E, pelo contrário, como
boa teimosa, arrependo-me daquilo que não consegui fazer e continuo, feito mula
empacada, a acreditar que ainda tenho razão de querer todo o meu querer.
A verdade é que a vida como eu a sinto
e imagino, por vezes, está um tanto longe do real, e eu gostaria muito de ser
uma pessoa mais objetiva; realista. Talvez nem todo o tempo desta vida tenha a
capacidade de mudar-me tanto assim. Talvez. Contudo, imaginar-me outra é algo
no mínimo divertido, não? Por isso, sorrio todas as vezes que penso na tal
frase – “Me estoy felizmente desacostumbrando de mí.”.
O Uruguai não é um país com
grandes atrações turísticas e, apesar de no primeiro momento isso incomodar
nossos olhos de turistas, depois de algum tempo percebemos que neste fato
reside a sua maior qualidade. Pois, apesar de não haver monumentos grandiosos,
castelos ou edifícios únicos, a natureza desta terra, em toda a sua extensão, é
simples e bela. Este é um país frugal e, portanto, não é um bom país para se
ver de passagem feito curiosidade de circo. Ele foi feito para ser um bom lugar
para se viver.
Por mais que se ande e procure, e
nós procuramos bastante, não há aqui grandes demonstrações de ostentação seja por
parte das pessoas que aqui vivem ou pela nação como um todo. Claro é que há
aqueles que têm muito mais que os outros, e claro também é que há aqueles que
quase nada têm. Percebemos estes extremos quando vamos a Punta Del Este com
seus edifícios grandiosos e cassinos ou quando notamos que sobre pedaços de
papelão e enrolado em alguns cobertores dorme um homem num canto de Montevidéu.
A vida nunca será totalmente justa e esta é uma verdade universal.
Contudo, a impressão que levo
comigo daqui é a de que o Uruguai não é um país de perfumaria que dá grande
valor às futilidades como o meu. Talvez por sua natureza rústica de quem
precisou lutar muito para ver-se independente do Brasil e da Argentina, a “frescura”,
como dizemos nós, não é algo natural aqui. Este é um país honesto e sincero, e
numa incongruência saudável, percebe-se que um dos países mais democráticos e
liberais das Américas é, também, um país profundamente tradicionalista no que diz
respeito à identidade de seu povo e sua cultura.
Não sei se voltarei para lá algum
dia. Creio que não, já que há tanto para ser visto neste Mundo e tão pouco
tempo em apenas uma vida para fazê-lo. Entretanto, se voltasse algum dia
escolheria uma época mais quente, pois o frio mesmo neste início de primavera é
difícil de aguentar ali, e iria de carro a dirigir por este país a conhecer o
que ele tem de mais belo e verdadeiro, aquilo que não foi feito para turista
ver.
Chegamos à Montevideo e a
primeira impressão que tenho é a de que a cidade lembra-me muito de Santos, no
litoral paulista. Não sei por que esta foi a impressão que bateu-me, ou
abateu-me. Talvez por seus edifícios de tamanho mediano, suas ruas arborizadas e
seu calçadão sem fim margeando o rio-feito-mar. Talvez, principalmente, porque
haja este rio que mais parece ao mar por seu tamanho sem fim para os nossos
olhos; o Rio da Plata neste ponto parece muito maior do que nossa imaginação
para rios pode prever. Se não fosse por suas águas escuras e por sabermos que
ainda não estamos defronte do oceano que nos aguarda alguns quilômetros adiante,
não fosse por isso, poderíamos crer, cegamente, que estamos defronte a um mar.
Lembrei-me do Tejo, que não tem
estas águas escuras de terra como o Rio da Prata, mas que também tem suas pretensões
à mar. O Tejo apresentou-se lindamente para mim, há um ano, com suas águas azuis
e cheias de história e estórias. Rio donde saíram as caravelas que nos
descobriram, rio que se debruça sobre o mar e que parece por ele ser recebido
de braços abertos convidando-o a navegar por suas águas. Vendo o Tejo chegar ao
Atlântico, compreendi porque parecia tão necessário aos portugueses navegar.
Lindo, também, se apresenta hoje
este rio latino e imponente, cheio de praias e barcos. Rio que separa
Montevideo e Buenos Aires, disso eu sei. No entanto, ainda não sei o quê este
rio me fará compreender. E por isso, assim que me vi cara a cara com ele,
estiquei o pescoço e apertei os olhos para ver se conseguia, com um esforço
tamanho, enxergar o país que fica do lado de lá do rio. Claro que não vi nada
além de água, céu e nuvens que mais pareciam montanhas a margear o rio. Apenas na
imaginação e nas lembranças Buenos Aires está presente e, por isso, posso
vê-la.