Não
fique apenas com dó.
Dê carinho a um torcedor homofóbico
Emerson Sheik, corintiano! |
Leonardo
Sakamoto 19/08/2013
Vi
a foto em que o jogador Emerson Sheik, do Corinthians, dá um selinho em um
amigo a fim de abrir a discussão sobre o preconceito – o que lhe garantiu, é
claro, uma saraivada de homofobia.
De
acordo com o UOL Esporte, faixas estendidas por torcedores no estacionamento do
clube agrediram o jogador com o que há de melhor do machismo brasileiro. E um
diretor de um organizada soltou pérolas, daquelas de guardar para usar em tese
de doutorado: ”A nação inteira está freneticamente indignada. Pode até ser a opção
dele, mas nós estamos sempre tirando sarro dos bambis [modo pejorativo com o
qual é chamada a torcida do São Paulo]. O mínimo que ele tem de fazer é um
pedido de desculpas”.
Geeeeeeeeeeeente…
Estou com tanta, mas tanta vergonha alheia por conta dessa parte mentecapta da
torcida corinthiana que nem cheguei a ter raiva. Apenas dó. Vontade de pegar no
colo e abraçar todos esses pequenos bisonhos com a mesma complacência com a
qual se trata uma criança que não entendeu ainda que não pode machucar amiguinhos e amiguinhas só porque eles agem
diferentes de nós. Educando, com amor e carinho, quem sabe, um dia vão
entender.
Em
entrevista ao programa Dono da Bola, da Rede Bandeirantes, nesta segunda (19),
ele deu uma aula de respeito à dignidade: “Acho que o mundo do futebol é muito
machista. Quero deixar claro que em nenhum momento desrespeitei alguém. Lá era
o Emerson pessoa. O Isaac é um cara que eu tenho imenso carinho, que agrega
muito na minha vida. E o Isaac é um queridão. A esposa dele está grávida, está
vindo um menininho. E daí a galera levou para um lado negativo. Acho que é um
preconceito babaca”.
“A
gente não quer ser homofóbico, mas tem de ter respeito com a camisa do
Corinthians. Aqui não vai ficar beijando homem. Hoje são 5, amanhã são 50 e
depois 500. Vamos fazer a vida dele um inferno”, disse ainda o tal diretor da
torcida organizada.
Você,
que diz que não é homofóbico mas age como tal. Que acha um absurdo homossexuais
serem surrados, mas “entende” quando gays “extrapolam” em suas liberdades, tiram
outras pessoas do sério e “exageros” acabam acontecendo. Que defende a
igualdade perante a lei, mesmo que vivamos em uma sociedade com pessoas que,
historicamente, tiveram mais direitos que outras e, portanto, estão em uma
situação privilegiada. Que acredita, acima de tudo, na proteção à família
cristã, com pai e mãe, como solução para todos os males do mundo. Você pode ser
dodói e, talvez, nem perceba. Pois o diabo, ele sim, não está apenas nos
grandes atos discriminatórios ou em genocídios, mas também nos detalhes que
causam dor no cotidiano.
Você
fica no fundo da sala de aula tirando barato da colega só porque descobriu que
ela é lésbica? Senta no sofá da sala e concorda com seu pai que alguma coisa
precisa ser feita pois o mundo está indo para o buraco e a prova disso é um
casal de “bichas” ter se beijado na saída do cinema? Na hora de contratar
alguém no escritório, prefere o hétero inexperiente do que a travesti mais do
que adequada para a função? Fica possesso por um hétero se juntar a um grupo de
gays e reclamar das piadinhas estúpidas e sem sentido que você faz? Vê seu
filho brincando de boneca com a amiguinha e, imediatamente, manda ele voltar
para casa e nunca mais permite que a veja de novo, pois não quer má influências
na formação dele? Acha uma aberração às leis de Deus duas mulheres ou dois
homens se dedicarem à criação de uma criança, mas gasta todo o seu tempo livre
com amigos, terceirizando seus filhos para uma babá? Considera que falar sobre
preconceito, igualdade, tolerância e homofobia para as crianças na escola fazem
com que elas “aprendam” a ser gays e lésbicas? Fica lisonjeado quando recebe
uma cantada de mulher, mas transtornado quando o gracejo vem de um homem? Acha
que beijar uma pessoa do mesmo sexo, demonstrando afeto, faz de você gay?
Os
torcedores revoltados morrem de medo do beijo de Sheik. E sabe o porquê? Por
medo. Viam no jogador uma referência. E quando essa referência quebra a
concepção de macho que eles têm, gera um tilt na cabeça deles. “Como assim? Eu,
que sou igual a ele ou desejava ser igual a ele, não beijo outro macho. Se não,
sou bicha. Se ele beija outro macho, é bicha. E se sou igual a ele… Não posso
ser bicha! Então, ele tem que parar de beijar outro macho já. Ou pagar pelo que
fez”.
Já
atravessamos uma revolução sexual. Podemos fazer sexo de forma mais livre e com
menos culpa que antes. Mas expressar nossos sentimentos é algo longe de
acontecer livremente. Chegou a hora de passarmos por uma transformação afetiva.
Em outras palavras, o homem hétero precisa fazer sua revolução masculina.
Precisa começar a entender que tem direito ao afeto, às emoções, a sentir.
Passar a ser homem e não macho.
Ele
é programado, desde pequeno, para que seja agressivo. Raramente a ele é dado o
direito que considere normal oferecer carinho e afeto para outro amigo em
público. Manifestar seus sentimentos é coisa de mina. Ou, pior, é coisa de
bicha. De quem está fora do seu papel. E vamos causando outros danos no
caminho: há mulheres que, para serem aceitas nesse mundo de homens, buscam nos
copiar no que temos de pior.
Gostaria
que tivesse chegado o momento de sairmos de nossa zona de conforto e começarmos
a educar nossos filhos para viverem sem medo. E não para serem inimigos de quem
não tem pênis. Só isso resolve? Não mesmo, o problema é profundo. Mas já ajuda.
Enquanto
isso, há outros processos que precisam ser acompanhados. Em 2007, ao arquivar
uma denúncia do jogador são-paulino Richarlyson contra o diretor do Palmeiras,
José Cirillo Jr., o juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho sugeriu que se o
jogador fosse homossexual, “melhor seria que abandonasse os gramados”. Disse
também que “quem se recorda da Copa do Mundo de 1970, quem viu o escrete de
ouro jogando (…) jamais conceberia um ídolo ser homossexual”. Também proferiu
que: “Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo.
Mas forme seu time e inicie uma Federação”. Por fim, arrematou o seu pacote de
besteiras dessa forma: “Cada um na sua área, cada macaco no seu galho, cada
galo em seu terreiro, cada rei em seu baralho. É assim que penso”. Um gênio.
Uma
pessoa com um cargo público com poder de decisão (que deveria garantir que os
direitos fossem válidos a todos os cidadãos e proteger as minorias ameaçadas)
não poderia nunca construir uma imbecilidade dessas. Age, dessa forma, não para
fazer valer o Estado de Direito, mas sim para incentivar a intolerância,
empurrando a sociedade para o precipício, baseado em uma formação individual
extremamente deficiente.
O
pior não é encontrar peças jurídicas com um grau de estupidez, machismo e
ignorância como essas. Se elas fossem apenas distorções, vá lá, uma instância
superiora célere, competente e honesta seria capaz de desconsiderá-las como
argumento ou revertê-las como decisão. O problema é saber que, infelizmente,
essas análises refletem um naco da sociedade brasileira formado por ricos e
pobres, letrados ou não, torcedores do Corinthians, São Paulo, Palmeiras,
Santos, Flamengo, Fluminense, Botafogo, Vasco…
Não
é uma questão educacional pura e simples. É consciência. E isso não se aprende
na escola, nem é reserva moral passada de pai para filho nas famílias ricas.
Mas sim na vivência comum na sociedade, na tentativa do conhecimento do outro,
na busca por, mais do que tolerar, entender as diferenças. O futebol é fruto do
tecido social em que está inserido. Muitos assumem em suas declarações como
profissionais, o preconceito das piadas maldosas contra gays, lésbicas,
transsexuais ou transgêneros ou dos pequenos machismos em que nós (e não me
excluo disso) nos afundamos no dia-a-dia. O que difere é o tamanho, não a dor
que proporciona.
Coloquemos
a culpa no processo de formação do Brasil, na herança do patriarcalismo
português, nas imposições religiosas, no Jardim do Éden e por aí vai. É mais
fácil atestar que somos frutos de algo, determinados pelo passado, do que
tentar romper com uma inércia que mantém cidadãos de primeira classe (homens,
ricos, brancos, heterossexuais) e segunda classe (mulheres, pobres, negras e índias,
homossexuais etc.) Tem sido uma luta inglória, mas necessária. Que inclui uma
profunda reflexão sobre nossos próprios comportamentos e o reconhecimento
público daqueles que, com seus atos e palavras, nos fazem avançar como
sociedade. Como Sheik.
De
tempos em tempos, homossexuais são espancados e assassinados nas ruas só porque
ousaram ser diferentes da maioria. Atos que têm o mesmo DNA de faixas
homofóbicas exibidas na porta de um clube de futebol. Não é a mão de lideranças
de torcidas organizadas que seguram a faca, o revólver ou a lâmpada
fluorescente que agridem gays nas ruas de São Paulo, da mesma forma que não são
as mãos de lideranças religiosas que pregam contra essa “pouca vergonha”. Mas é
a sobreposicão de seus argumentos ao longo do tempo que distorce o mundo e
torna o ato de esfaquear, atirar e atacar banais. Ou, melhor dizendo,
“necessários”, quase uma ordem. São pessoas assim que alimentam lentamente a
intolerância, que depois será consumida pelos malucos que fazem o serviço sujo.
Enfim,
este palmeirense ficou fã de Emerson Sheik. Pois é prova viva de que há futuro,
não apenas para o futebol, mas para a dignidade nesse país.
Leonardo Sakamoto, o autor. |
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