quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

O Campo do Politicamente Incorreto




Ontem houve jogo de futebol, como todas as quartas e domingos durante muitos meses do ano, como alguns sábados em terras brasilis, como as segundas e terças além-mar. Coisa que eu amo, aliás, e que chega a fazer-me falta nos meses de recesso de “la cancha”. Contudo, eu e todos os fãs do esporte bretão devemos perceber que o futebol, muito longe de ser uma unanimidade no planeta Terra, tem pouca ou nenhuma importância para quem por ele não nutre paixão. Apesar de toda a importância que ele tem para seus aficionados, o futebol é um esporte e só. E ponto final.

E mesmo sendo uma paixão para muitos, o tal esporte arte que replica batalhas de reinos antigos, este xadrez mais barulhento e divertido, não deve ser racionalizado demais. A lógica não pertence a este campo desimportante enquanto paixão, e gastar muito tempo a discutir sua filosofia e o comportamento dos torcedores do tal esporte é mesmo um desperdício de tempo. Para o dia-a-dia do cidadão, a realidade séria e fundamental dos homens, o papo de boleiro é uma bobeira, papo furado de botequim; algo útil apenas para os torcedores que são capazes de passar horas a fio a discutir um lance qualquer que não mudará a vida de ninguém.

Claro que o “fair play” é fundamental, pois através do esporte pretende-se ensinar e aprender belas lições como o trabalho em equipe, a solidariedade, a disciplina e etc e tal. Entretanto e com todos os “contudos”, a boca-suja é parte fundamental do tapete verde (e da sala de estar em dia de jogo do time do coração) tanto quanto todas as outras partes que dele fazem parte. Xinga-se no futebol. É feio, eu sei, mas esta é a única arma que se tem contra o exército inimigo para quem ocupa as cadeiras dos estádios ou o sofá de casa.

As mães são xingadas, manda-se os adversários a atos libidinosos sodomitas, e profere-se toda sorte de palavras de baixo calão ou qualquer outra coisa que se imagine útil para gozar com um sujeito ou deixá-lo para lá de irritado, feito crianças mal-educadas.  E, apesar da ciência da falta de educação que isso denota e do quão agressivo e ofensivo pode parecer, ou ser em alguns casos, tudo que se fala em campo não deve ser levado tão a sério, pois, não é.

Assim como no humor, o politicamente correto e ético não cabe aqui. A partida de futebol é um dos poucos antros onde a má educação tem licença poética, e não se espera que o que ali é dito dali saia a repercutir como se fosse uma opinião formada por qualquer coisa que seja. Provoca-se o adversário com o que se imagina provocador apenas porque é divertido provocar, mas no final das contas tudo não passa de bobagem sem intenção na grande maioria das vezes.

Sei que a linha entre o que podemos e o que não podemos fazer é muito tênue e que a ultrapassamos todo santo dia mesmo sem querer e com a melhor das intenções. Todos nós fazemos isso. Mas também sei que não se deve levar a sério aquilo que é apenas uma brincadeira. Já xinguei e já fui xingada em alto e bom tom em partidas de futebol sem nunca preocupar-me com isso. Porém, acabada a peleja em campo, acaba toda a troça e, fora de campo e pela vida a fora devemos respeito a quem quer que seja sempre.  

No final das contas o fundamental é lembrar que o segredo da vida é não levá-la tão a sério, pois que já há uma porção de coisas sérias a nos chatear. E o futebol cá está para distrair-nos da rotina da vida; nosso circo romano moderno.



terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Surdez





De repente cala-se o mundo
ensurdeço eu.
De repente o que não chegou a ter começo
termina.
E a história fica assim sem ser dita
e sem motivos para quase ter sido
a mais bela história sem fim nesta vida.
De repente não ouço nada
calo-me.
E ficam sem motivos todas as palavras já escritas
e mesmo aqueles que ainda viriam
a ser, morrem.
Abraço-me a surdez.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Ana (parte 3)


Parte 1
Ana percebeu-se. Suave e indefinida, apenas uma leve consciência do existir respirava. A menina sabia-se viva, porém não passava de fina consciência todo o saber que a ela lhe cabia. Ana... Ana era a única coisa que dela restara; toda sua identidade. Sua consciência resumia-se a três letras – Ana. Com os olhos fechados, pregados pelo medo do que pudessem ver, de tudo o que não poderiam compreender, a mulher jazia numa cama. Braços inertes, pernas inertes. Por algum motivo que ela desconhecia havia um pânico do mover-se. Mover-se doeria? E se sua pele abrisse pelo esforço; pelo desejo agudo dos ossos de rompê-la para fugir dali. Para fugir de um corpo que a eles não pertencia, um corpo do qual a dona não tinha memória e que, mais que ela mesma, lhe parecia um peso; um estorvo.
Passaram-se minutos, dezenas arrastadas deles. Horas de caminhar lento passaram antes que Ana abrisse os olhos castanhos e opacos no exato instante em que a curiosidade tão natural da alma humana venceu o medo. Os olhos viram o branco corpo que não reconheciam, mas que a eles pertencia. Um vestido branco e leve de delicadas flores amarelas e pálidas cobria-lhe o ventre, parte das pernas; a metade das coxas. Os olhos desceram pelas coxas, a canela... A unha do dedo maior do pé esquerdo sumira. O dedo latejava, ou ela imaginava-o a latejar porque é exatamente isso que se espera de um dedo cuja unha foi arrancada. Arrancaram-na? Quando? Por quê?... Por quê?... Por quê?
Os porquês reproduziam-se em ecos doloridos, magoados. Os porquês provocaram lágrimas silenciosas e órfãs. Ana não se reconhecia, e sentia-se dona de uma solidão tão ampla quanto podia ser a solidão de quem não se sabe. O choro ganhou ânimo para afogar os olhos da menina que os tornou a fechar. Ana queria esquecer-se completamente.


Parte 2
Pela janela, através de exaustas venezianas de madeira azul claras, entrava delicada luz que tocava o braço direito de Ana. O choro cessara há algum tempo, talvez ela tivesse adormecido mais uma vez; talvez. Não se lembrava desta luz a tocar sua pele assim como não se lembrava de sua vida, de seu nome completo, de onde estava, de qual dia, mês ou ano aquele era. Assim, tão sem lembranças e apenas certa daquilo que não sabia, Ana duvidava até mesmo de sua própria existência.
“Estou mesmo viva?” pensava a menina estática que jazia na cama. “Estou mesmo viva e respiro ou apenas imagino este respirar?”
Ana lembrou-se da falta da unha em seu pé esquerdo e reabriu seus olhos. Era verdade, faltava-lhe uma unha e havia um pequeno bocado enegrecido de sangue que saíra do dedo e escorrera pelo peito do pé. O dedo lhe doía e, portanto, ela estava viva; concluiu Ana. Os não vivos não sentem dor, não sentem nada, e a dor do dedo do pé esquerdo era, naquele momento, um conforto para aquela mulher que não sabia quem era ela e nem onde estava. Havia uma certeza; quiçá a única que qualquer ser humano podia ter nesta vida: Ana sabia-se viva porque seu dedo doía.
Por que havia tanto medo nela? Medo de mover-se, medo de ouvir algo, medo de ver algo para além do vestido florido e da unha ausente. As paredes do quarto eram brancas e nuas como se tivessem sido recém pintadas e contrastavam com as cansadas venezianas de azul sem vida. Não havia quadros, não havia manchas, não havia nem ao menos um único prego ou gancho que maculasse aquele branco completo e sufocante.
“Onde estou?” pensava a atordoada mente da moça que jazia numa cama barata de metal cinza claro.
Ana abriu a boca, pois percebera os secos lábios rachados e sentiu a urgente necessidade de umedecê-los como se disso dependesse a manutenção de sua vida. A língua de Ana tocou lhe os lábios e percebeu um pequeno corte à direita assim que o sal do sangue invadiu-lhe o paladar.
“Onde estou, meu Deus?” pensou a menina que não ousava falar por medo de que alguém a ouvisse.
Voltaram as lágrimas ao rosto de Ana.


Parte 3
Ana tentou acalmar-se, conter o pranto; pensar. Pensar o quê? Não sabia. Sabia apenas que jazia na cama com medo, que lhe faltava uma unha, que a boca estava ferida e que emagrecera. Emagrecera? Como podia ser dona desta impressão se não se lembrava de nada? Mais que um fato, aquela era uma sensação. Ana sentia que tinha sido mais gorda, que havia alguma carne no corpo que agora parecia seco. Ela estava seca. Como alguém seco chora?
Então, a menina chorou sem lágrimas. Sentindo a mágoa a invadir-lhe, a dor a abraçá-la. Havia tanto silêncio e solidão. Tanto silêncio que parecia que o mundo deixara de existir.
“O que existe por detrás da janela azul?”, perguntou-se. “O quê?”
Por alguns instantes a mulher de vestido florido e gasto tentou ouvir o mundo afiando os ouvidos. Nada. Ana não entendia como podia haver tanto silêncio e lembrou-se da mãe. Não de sua mãe, talvez, mas de uma mãe. Ela devia ter uma mãe como todos têm, não têm? Onde estava a sua mãe que não estava aqui ao seu lado? Todas as mães ficam ao lado de seus filhos nos momentos difíceis, e aquele era um momento difícil. Muito difícil.
“Qual o nome de minha mãe?”
“Pareço-me com ela?”
“Está viva?”
“Por que não está aqui agora?”
Eram tantas as perguntas que atormentavam sua cabeça que Ana sentiu-se irritada; com raiva. E num impulso sem qualquer medo ou pensamento, sentou-se na cama. Seus olhos arregalaram-se, o coração acelerou, o medo cresceu. E pela primeira vez Ana ouviu sua própria voz baixa, rouca e pouca.
“Mãe?”
Não havia nenhuma dor para além da dor do dedo do pé esquerdo. Ana estava um pouco zonza pelo levantar-se de repente, mas não havia dor. Ela olhou para a janela e sentiu que o medo diminuía. Ela tinha que olhar pelas frestas. Talvez pudesse abri-la e ver. Talvez.
O chão estava fresco, não frio. A suave temperatura do solo de um revestimento bege a reconfortou porque com ele veio a idéia de que o dia deveria estar bonito lá fora. O chão estava quase morno; era verão com certeza, porque apenas no verão o chão fica agradável daquele jeito dentro das casas. Ana amava o verão e seu sol cheio de força e vida. Amava os dias longos e as pessoas com roupas leves a passear pelas ruas. No verão havia mais gente na rua e ela adorava este tempo de vestidos levianos, coloridos, suaves e pequenos.
Ana tentou levantar-se da cama, pois queria ver o verão pelas frestas da janela. E ela imaginava uma bela tarde ensolarada a julgar pela luz que entrava pelas frestas, imaginava pessoas nas ruas, e imaginava que alguém dentre todos que passeavam pela rua poderia explicar-lhe onde ela estava. Ana imaginava algo bonito quando uma dor sem precedentes invadiu-a. Os ossos da perna esquerda pareciam ruir-se por dentro, e a dor cortou-a sem piedade ou compaixão.
A mulher vestida de verão sentou-se novamente e, assustada, fitava a perna que latejava tremendamente e parecia querer desmanchar-se em pedaços pequenos.
Ana deitou-se, fechou os olhos. Sem forças, sem lágrimas, ela queria esquecer-se mais uma vez.