domingo, 30 de maio de 2021

“A morte dos girassóis”

 


“A morte dos girassóis”

Anoitecia, eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando, pálido demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar para trás, quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia apenas os brincos-de-princesa, a enredadeira subindo tenta pelos cordões, rosas cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou mais pálido. Perguntei que-que foi, e ele enfim suspirou: “Me disseram no Bonfim que você morreu na Quinta-feira.” Eu disse ou pensei em dizer ou de tal forma deveria ter dito que foi como se dissesse: “É verdade, morri sim. Isso que você está vendo é uma aparição, voltei porque não consigo me libertar do jardim, vou ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar aquela rosa amarela plantada no dia de Oxum. Quando passar por lá no Bonfim diz que sim, que morri mesmo, e já faz tempo, lá por agosto do ano passado. Aproveita e avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado: enfim um lugar sem baixo-astral.”

Acho que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.

Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas.

Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.

Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: “Mas o senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me olhando tão pálido quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer.

Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.

Alguns amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nem dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numa espada-de-são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo. Quando parecia quase bom, cráu! Veio uma chuva medonha e deitou-se por terra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a ideia: cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio dos ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo.

Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o outro. Um com o talo torto, outro com as mãos quebradas. Durou pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada, para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado à terra, depois não sei ao certo, voltasse à tona fazendo parte de uma rosa, palma-de-santa-rita, lírio ou azaléia, vai saber que tramas armam as raízes lá embaixo no escuro, em segredo.

Ah, pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu? Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.

De Caio F. Abreu

(Zero Hora, 18.3.1995)

 

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Seu Nelson Sargento

Discípulo e parceiro de Cartola, Seu Nelson Sargento foi a memória viva do samba clássico a romper o século 21. Samba doído, cheio de sentimento e compassado, samba de passo miudinho que traz em si toda a melancolia sorridente do brasileiro. Sem ele estamos órfãos definitivamente dos fundadores do samba que desceu o morro e deu vida ao que chamamos hoje de carnaval. A alma brasileira fica mais triste sem Nelson Sargento.

Samba no céu, Seu Nelson!




Deixa

Eu mesmo quero resolver os meus dilemas

Deixa

Quero escrever embora esteja com as mãos trêmulas

É assunto meu sei que ninguém dá solução

Tudo quanto sofro vou dizer nessa canção

 

Deixa

Quando ela ouvir os meus poemas vai chorar

A consciência vai lhe castigar

Perdão não quero nem vou perdoar

 

Deixa

Meu sofrimento um dia vai ter fim

Os meus poemas vão falar por mim

De todo mal que o amor me fez

Deixa

A razão dizer quem tem razão

E o fantasma da ingratidão

Se retira com desfaçatez


sexta-feira, 21 de maio de 2021

Saudades do Manoel

 


Saudades do Manoel

 

Porque ando a achar mais graça no que não tem lógica

Nem tamanho

Gasto meu tempo vivo no desimportante

No fantasioso

Deu-me uma saudade angustiada de Manoel

E sua pequenez fantástica

Precisei então me ocupar de galhinhos secos caídos pelo caminho

Deixei toda a minha atenção focada nas pedras não colocadas pelas

Minhas mãos

O que me interessa existe apenas para mim

Pequeno mundo delicado que respira lento

Mornamente

Apenas o que as crianças me contam me interessa

O resto não tem beleza

O resto passa ao largo sem que de mim faça parte

A realidade é imaterial

 

 

Um pouco da genialidade de Manoel de Barros (homem passarinho)

 


O livro sobre nada

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.

Tudo que não invento é falso.

Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

Tem mais presença em mim o que me falta.

Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.

Sou muito preparado de conflitos.

Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.

O meu amanhecer vai ser de noite.

Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.

O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.

Meu avesso é mais visível do que um poste.

Sábio é o que adivinha.

Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.

A inércia é meu ato principal.

Não saio de dentro de mim nem pra pescar.

Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.

Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.

Peixe não tem honras nem horizontes.

Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.

Eu queria ser lido pelas pedras.

As palavras me escondem sem cuidado.

Aonde eu não estou as palavras me acham.

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.

Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.

A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.

Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.

Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.

Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.

Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.

O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.

Por pudor sou impuro.

O branco me corrompe.

Não gosto de palavra acostumada.

A minha diferença é sempre menos.

Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.

Não preciso do fim para chegar.

Do lugar onde estou já fui embora.


de Manoel de Barros

sábado, 8 de maio de 2021

Por Enquanto...


 

DOM CASMURRO

 


DOM CASMURRO

 

Ana colocara água morna, flores de lavanda e camomila na bacia metálica e admirava as delicadas flores a tocar seus pés de unhas vermelhas feitas. Ela queria aquecer um pouco os pés que eram, indelicadamente, frios mesmo nas tardes de outono. João, depois de tanto tempo, anos, uma vida inteira para ela lhe parecia, estaria mais uma vez ali; no apartamento que um dia foi dele também.

Cassia Eller enchia a sala e a varanda com sua voz enquanto vagavam os pensamentos e as flores à deriva. Porque João viria visitá-la, Ana não sabia. Como não sabia o porquê dessas repentinas saudades de ouvir repetidamente a voz de Cassia Eller. Ela se foi cedo demais. Ele também.  E muito provavelmente João ficaria pouco tempo por aqui; um dia? Um par de horas, minutos talvez? Não importava.

Ele era seu menino, mesmo não o sendo mais. Seu preto, o único por quem ela um dia tinha se perdido e permitido todos os sentimentos sabidos e os desconhecidos também. João era um cometa. Para ela ele era um acontecimento divino; mesmo conhecendo todos os defeitos que ele tinha. Seus silêncios pesados e as inocentes mentiras; a falta de coragem que o detinha.

Porém, como não perdoar todos os defeitos de um homem tão delicado como aquele? Pensava a menina que já não o era. João era, para ela, alguém muito forte que sempre se recusou, por gentileza e um pouco de preguiça, a utilizar-se da força que tinha. Ele decidira ser uma flor colorida e bonita ao invés de um monstro. Ele a encantara.

Há tanto tempo ele a encantara, homem-sereia, com aquela voz. Tanto tempo passara sem que eles se vissem e não há motivos para esse retorno agora. Tanto mudou. Tudo mudou. “Eu mudei tanto”, pensou uma assustada Ana.

Ela tinha envelhecido e os cabelos não eram os mesmos, nem as mãos. Ele também mudara e estava maior. Ela talvez diminuíra. Porém, no chão da sala ao lado da bacia metálica ainda estavam as havaianas descansando. E ela ainda gostava de ouvir música boa muito alta. Ela ainda se arrepiava ao pensar nele.

Ah... Ana fechou os olhos sentindo os pés mornos e o sol suave do fim de tarde no colo. Pensou em João. Em suas mãos e suas pernas, nos seus dentes na carne dela... e o respirar dela ficou difícil, gordo e apressado. Pensou na língua dele a passear e na língua dela a vagar por todos os cantos e recantos...

Ela não sabia porque João havia decidido que deveria vir vê-la. Talvez fosse o tédio tão comum à vida, talvez quisesse algum favor ou apenas vinha buscar algo esquecido numa das gavetas do quarto de dormir. Talvez... porém nada disso importava para ela. Não. Nada importava porque apenas a ideia dele ali na sua frente a fazia sorrir. E isso, isso era a única coisa que a ela qualquer sentido fazia.

Ana enxugara os pés que agora descansavam no chinelo branco e mal eram vistos sob a saia do longo vestido azul de flores miúdas. Vestido novo e que ela comprara porque lhe fazia sentir o cheiro da primavera na praia. João gostava da primavera como ela. Tanto que o humor dele melhorava com a chegada das flores e dos dias mais claros. João sorria mais na primavera, e ela achou que o tal vestido seria bom para a ocasião.

Ela estava abrindo a garrafa de vinho quando soou a campainha.

“Oi, sou eu.” Disse um tanto cheia de si a indefectível voz de João pelo interfone.

“A porta está aberta, sobe.” Disse Ana num vagar manso.

A porta se abriu.