quarta-feira, 29 de junho de 2016

Os Manoueis poéticos




O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

Manoel de Barros



Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira

sexta-feira, 24 de junho de 2016

A Casa




A Casa


Dias frios e azulados de céu iluminado na cidade de gentes caladas,
gentes que vieram de todos os lados;
aqui somos todos diferentes e, por isso, somos todos iguais ao mesmo tempo.
Gente que caminha calada e encolhida numa cidade feita de muita pedra e sofrimento,
ponto de encontro dos sem destino certo
desde os tempos nos quais ainda não tínhamos certeza se o mundo era redondo com certeza.
Índios, europeus, africanos,
japoneses, judeus e libaneses: aqui viramos todos parentes,
irmãos bastardos que caminham, querendo ou não, lado a lado.
Esta é minha terra, e aqui estão as ruas por onde aprendi a caminhar,
onde aprendi como cai a chuva, sobre os ombros de quem quer que seja
sem qualquer distinção, de todas as formas conhecidas no planeta...
Grossa e quente,
fina e fria.
Onde aprendi que os dias podem ser bons, longos e quentes no verão;
e que as madrugadas de inverno matam congelando por dentro os que, enamorados pela ilusão,
decidiram  seguir de braços dados, por um breve momento, com a solidão.
Dias cinzas na minha cidade de tantas gentes frias e iluminadas,
cidade dos amigos, das raízes, da família.
Cidade que será para sempre aquilo que eu chamo de lar,
passe o que passe, seja como seja,
esteja eu a viver em qualquer outro ponto deste planeta:
sou e serei por toda a vida uma mulher paulistana a viver em terras estrangeiras.


domingo, 19 de junho de 2016

Brasil, que país é esse?



Brasil, que país é esse?


Os dias andam tão estranhos que, às vezes, percebo que não sei mais o que significa ser brasileiro. Quem somos nós atualmente? Qual a nossa verdadeira identidade? Somos ainda o povo hospitaleiro, alegre, criativo e otimista ou tornamo-nos, definitivamente, uma nação de homens violentos, céticos, abusivamente materialistas e egoístas? Não sei.

É bem verdade que sempre haverá um pouco de tudo num país grande como o Brasil, e que as tragédias humanas serão sempre material mais farto e amplo quando pensamos em vender notícias. Somos, sem qualquer sombra de dúvida, seres donos de uma curiosidade enamorada por tudo o que é mórbido. Contudo, não há como negar que a vida em “Terras Brasilis” torna-se, num “continuum” que parece não ter fim, em algo mais e mais violento, difícil e feio a cada dia que passa.

Há muito ficaram esquecidas as minhas tardes a andar de bicicleta pelas ruas da cidade sem qualquer preocupação, nem com os carros nem com as gentes. Quase não existem mais as idas e vindas à escola de crianças ainda pequenas e independentes, lá pelos oito ou nove anos de idade, sozinhas. O caminhar pelas ruas sem se preocupar, não importando se é cedo ou tarde demais, é artigo raro hoje em dia, pois, ato reflexo, quase todo brasileiro anda pela sua cidade atento, alerta e cheio de receios.

Nos primeiros dias deste junho um menino de dez anos morreu em São Paulo a trocar tiros com a polícia. Ele e um amigo de onze anos haviam roubado um carro e, armados, fugiam da polícia. E a pergunta que não sai da cabeça é: o que pensar de um país que tem meninos, tão pequenos, vivendo uma vida de bandidos; armados e agressivos? Que argumentos utilizar para explicar este fato ao mundo e aos nossos filhos? Como pode haver um menino de dez anos com uma arma em punho pelas ruas da cidade mais rica desta nação? Como pode haver tantos destes meninos e meninas espalhados por tantos caminhos? O que é que os adultos, todos nós, que deveríamos proteger a toda e qualquer criança, pois este é nosso dever e obrigação, estamos fazendo de tão equivocado neste nosso mundo tão esquisito? Como podemos ser indiferentes a isso?

Somos um país de líderes corruptos e cínicos e de um povo egoísta, fútil e materialista a construir um futuro sombrio onde nada para além do dinheiro merece qualquer respeito? É isso mesmo? Não tenho qualquer resposta para tais perguntas como todo o mundo aqui não parece a ter, e sinto-me triste com tudo que ouço e vejo; e comigo mesma. Vale sempre lembrar que o mundo, e todos os seus cantinhos, foi feito para todos nós e que assim deve ser sempre. Mesmo que poucos assim não o queiram, o Mundo deve ser de todos e para todos ou chegará o dia no qual ele não será de mais ninguém.

Que país é esse? Música da Legião Urbana, escrita por Renato Russo em 1978 e lançada no disco de mesmo nome em 1987. Quase 30 anos depois somos, infelizmente, o mesmo país.





quinta-feira, 16 de junho de 2016

EL DERECHO AL DELIRIO













EL DERECHO AL DELIRIO, por Eduardo Galeano




¿Qué tal si deliramos por un ratito? ¿Qué tal si clavamos los ojos más allá de la infamia para adivinar otro mundo posible?
El aire estará limpio de todo veneno que no provenga de los miedos humanos y de las humanas pasiones;
En las calles, los automóviles serán aplastados por los perros;
La gente no será manejada por el automóvil, ni será programada por el ordenador, ni será comprada por el supermercado, ni será tampoco mirada por el televisor;
El televisor dejará de ser el miembro más importante de la familia y será tratado como la plancha o el lavarropas;
Se incorporará a los códigos penales el delito de estupidez, que cometen quienes viven por tener o por ganar, en vez de vivir por vivir nomás, como canta el pájaro sin saber que canta y como juega el niño sin saber que juega;
En ningún país irán presos los muchachos que se nieguen a cumplir el servicio militar, sino los que quieran cumplirlo;
Nadie vivirá para trabajar pero todos trabajarán para vivir;
Los economistas no llamarán nivel de vida al nivel de consumo, ni llamarán calidad de vida a la cantidad de cosas;
Los cocineros no creerán que a las langostas les encanta que las hiervan vivas;
Los historiadores no creerán que a los países les encanta ser invadidos;
Los políticos no creerán que a los pobres les encanta comer promesas;
La solemnidad se dejará de creer que es una virtud, y nadie tomará en serio a nadie que no sea capaz de tomarse el pelo;
La muerte y el dinero perderán sus mágicos poderes y ni por defunción ni por fortuna se convertirá el canalla en virtuoso caballero;
La comida no será una mercancía, ni la comunicación un negocio, porque la comida y la comunicación son derechos humanos;
Nadie morirá de hambre, porque nadie morirá de indigestión;
Los niños de la calle no serán tratados como si fueran basura, porque no habrá niños de la calle;
Los niños ricos no serán tratados como si fueran dinero, porque no habrá niños ricos;
La educación no será el privilegio de quienes puedan pagarla y la policía no será la maldición de quienes no puedan comprarla;
La justicia y la libertad, hermanas siamesas condenadas a vivir separadas, volverán a juntarse, bien pegaditas, espalda contra espalda;
En Argentina, las locas de Plaza de Mayo serán un ejemplo de salud mental, porque ellas se negaron a olvidar en los tiempos de la amnesia obligatoria;
La Santa Madre Iglesia corregirá las erratas de las tablas de Moisés, y el sexto mandamiento ordenará festejar el cuerpo;
La Iglesia también dictará otro mandamiento, que se le había olvidado a Dios: «Amarás a la naturaleza, de la que formas parte»;
Serán reforestados los desiertos del mundo y los desiertos del alma;
Los desesperados serán esperados y los perdidos serán encontrados porque ellos se desesperaron de tanto esperar y ellos se perdieron por tanto buscar;
Seremos compatriotas y contemporáneos de todos los que tengan voluntad de belleza y voluntad de justicia, hayan nacido donde hayan nacido y hayan vivido cuando hayan vivido, sin que importen ni un poquito las fronteras del mapa o del tiempo;

Seremos imperfectos porque la perfección seguirá siendo el aburrido privilegio de los dioses; pero en este mundo, en este mundo chambón y jodido, seremos capaces de vivir cada día como si fuera el primero y, cada noche como si fuera la última.

terça-feira, 14 de junho de 2016

palavras




palavras


Palavras mortas, sonolentas, fingem-se sábias;

fingem saber o que querem dizer

enquanto os olhos observam o passar das horas sem conseguir,

por um pequeno instante que seja,

enxergar nada.

Palavras podres, mortas e enterradas, fingem-se inspiradas e ainda a respirar;

fingem caminhar pelos meus dedos

enquanto moinhos de vento imóveis calam-se no eterno horizonte ensolarado

e azul neste deserto de águas.

Palavras, sem elas não sou nada; não sei quem sou e apenas finjo-me acordada,

fingindo que tudo segue tranquilamente como deveria ser,

sigo como se ainda respirasse em mim, viva, a bailarina

de piruetas e saltos alegres; de fantasias.

palavras.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

CANÍBAL





Caníbal

Se estrujan mis sentidos
no puedo despertar
Mi cuerpo ya curtido
Quiere reinventar
Acuchillar mis miedos
Dejarlos desangrar
Desenchufar todos mis dedos
Llegar a algún lugar

Caí estando arriba
Creí y era mentira…
Estoy suspendida
La altivez me perseguía
No la supe detener
Cuando todo decrecía
Encontré como trascender
Abriendo cual cirugía
Fui descociendo mi ser
Consumiendo en carne viva
A quien quise pretender

Caí estando arriba
Creí y era mentira…
Estoy sumergida

Mientras me iba hundiendo
Un cuerpo fue devorado
El corazón desplumado
En mi estaba latiendo

Caí estando arriba
Creí y era mentira…
Estoy desprendida
Y estando arriba

Y era mentira …




quarta-feira, 8 de junho de 2016

Dark Necessities




Dark Necessities
Red Hot Chili Peppers
 
Coming out to the light of day
We got many moons than a deeper place
So I keep an eye on the shadow's smile
To see what it has to say
You and I both know
Everything must go away
Ah, what do you say?

Spinning off, head is on my heart
It's like a bit of light and a touch of dark
You got sneak attacked from the zodiac
But I see your eyes spark
Keep the breeze and go
Blow by blow and go away
Oh, what do you say?

Yeah, you don't know my mind
You don't know my kind
Dark necessities are part of my design
Tell the world that I'm falling from the sky
Dark necessities are part of my design

Stumble down to the parking lot
You got no time for the afterthought
They're like ice cream for an astronaut
Well that's me looking for weed
Turn the corner and
Find the world and show command
Playing the hand

Yeah, you don't know my mind
You don't know my kind
Dark necessities are part of my design
Tell the world that I'm falling from the sky
Dark necessities are part of my design

Do you want this love of mine?
The darkness helps to sort the shine
Do you want it, do you want it now?
Do you want it overtime?
The darkness helps to sort the shine
Do you want it, do you want it now?

Pick you up like a paperback
With the track of a maniac
So I'm moving in while we unpack
It's the same as yesterday
Honey, where we roll
Everything must go away
Ah, what do you say?

Yeah, you don't know my mind
You don't know my kind
Dark necessities are part of my design
Tell the world that I'm falling from the sky
Dark necessities are part of my design

domingo, 5 de junho de 2016

Perdida




Perdida

Ana percebeu-se. Suave e indefinida, apenas uma leve consciência do existir respirava. A menina sabia-se viva, porém não passava de fina consciência todo o saber que a ela lhe cabia. Ana... Ana era a única coisa que dela restara; toda sua identidade. Sua consciência resumia-se a três letras – Ana. Com os olhos fechados, pregados pelo medo do que pudessem ver, de tudo o que não poderiam compreender, ela respirava reticente. A mulher jazia numa cama. Braços inertes, pernas inertes. Por algum motivo que ela desconhecia havia o medo do mover-se. Mover-se doeria? E se sua pele abrisse pelo esforço; pelo desejo agudo dos ossos de rompê-la para fugir dali. Para fugir de um corpo que a eles não pertencia, um corpo do qual a dona não tinha memória e que, mais que ela mesma, lhe parecia um peso; um estorvo.
Passaram-se minutos, dezenas arrastadas deles. Horas de caminhar lento passaram antes que Ana abrisse os olhos castanhos e opacos no exato instante em que a curiosidade tão natural da alma humana venceu o medo. Os olhos viram o branco corpo que não reconheciam, mas que a eles pertencia. Um vestido branco e leve de delicadas flores amarelas e pálidas cobria-lhe o ventre, parte das pernas; a metade das coxas. Os olhos desceram pelas coxas, a canela... A unha do dedo maior do pé esquerdo sumira. O dedo latejava, ou ela imaginava-o a latejar porque é exatamente isso que se espera de um dedo cuja unha foi arrancada. Arrancaram-na? Quando? Por quê?...
Os porquês reproduziam-se em ecos doloridos, magoados. Os porquês provocaram lágrimas silenciosas e órfãs. Ana não se reconhecia, e sentia-se dona de uma solidão tão ampla quanto podia ser a solidão de quem não se sabe. O choro ganhou ânimo para afogar os olhos da menina que os tornou a fechar. Ana queria esquecer-se completamente.
Pela janela, através de exaustas venezianas de madeira azul clara, entrava delicada luz que tocava o braço direito de Ana. O choro cessara há algum tempo, talvez ela tivesse adormecido mais uma vez; talvez. Não se lembrava desta luz a tocar sua pele assim como não se lembrava de sua vida, de seu nome completo, de onde estava, de qual era o dia, mês ou ano. Desta maneira, tão sem lembranças e apenas certa daquilo que não sabia, Ana duvidava até mesmo de sua própria existência.
“Estou mesmo viva?” pensava a menina estática que jazia na cama. “Estou mesmo viva e respiro ou apenas imagino este respirar?”

Ana lembrou-se da falta da unha em seu pé esquerdo e reabriu seus olhos. Era verdade, faltava-lhe uma unha e havia um pequeno bocado enegrecido de sangue que saíra do dedo e escorrera pelo peito do pé. O dedo lhe doía e, portanto, ela estava viva; concluiu. Tudo que não está vivo não sente dor, não sente nada. E a dor do dedo do pé esquerdo era, naquele momento, um conforto para aquela mulher que não sabia quem era ela e nem onde estava. Havia uma certeza; quiçá a única que qualquer ser humano podia ter nesta vida: Ana sabia-se viva. E sua certeza era concreta porque seu dedo doía.
Por que havia tanto medo nela? Medo de mover-se, medo de ouvir algo, medo de ver algo para além do vestido florido e da unha ausente. As paredes do quarto eram brancas e nuas como se tivessem sido recém pintadas e contrastavam com as cansadas venezianas de azul sem vida. Não havia quadros, não havia manchas, não havia nem ao menos um único prego ou gancho que maculasse aquele branco completo e sufocante.
“Onde estou?” pensava a atordoada mente da moça que jazia numa cama barata de metal cinza claro.
Ana abriu a boca, pois percebera os secos lábios rachados e sentiu a urgente necessidade de umedecê-los para que a fina pele não se rompesse. A língua de Ana tocou lhe os lábios e percebeu um pequeno corte à direita através do sal do sangue que lhe invadiu o paladar.
“Onde estou, meu Deus?” pensou a menina que não ousava falar por medo de que alguém a ouvisse.
Voltaram as lágrimas ao rosto de Ana.
Ana tentou acalmar-se, conter o pranto; pensar. Pensar o quê? Não sabia. Sabia apenas que jazia na cama com medo, que lhe faltava uma unha, que a boca estava ferida e que emagrecera. Emagrecera? Como podia ser dona desta impressão se não se lembrava de nada? Mais que um fato, aquela era uma sensação. Ana sentia que tinha sido maior, que havia alguma carne no corpo que agora parecia seco. Ela estava seca. “Como alguém seco chora?”, pensou.
Então, a menina chorou sem lágrimas sentindo a mágoa a invadir-lhe, a dor a abraçá-la. Havia tanto silêncio e solidão. Tanto silêncio que parecia que o mundo deixara de existir.
“O que existe por detrás da janela azul?”, perguntou-se. “O quê?”

Por alguns instantes a mulher de vestido florido e gasto tentou ouvir o mundo afiando os ouvidos. Nada. Ana não entendia como podia haver tanto silêncio e lembrou-se da mãe. De uma mãe sem rosto definido e que era sua mãe porque a chamava de filha. Ela quase podia ouvir-la naquele instante e ela, como toda gente, devia ter uma mãe. Onde estava a sua mãe que não estava aqui ao seu lado? Todas as mães ficam ao lado de seus filhos nos momentos difíceis, e aquele era um momento difícil. Muito difícil.
“Qual o nome de minha mãe?”
“Pareço-me com ela?”
“Está viva?”
“Por que não está aqui agora?”
Eram tantas as perguntas que atormentavam sua cabeça que Ana sentiu-se irritada; com raiva. E num impulso sem qualquer medo ou pensamento, sentou-se na cama. Seus olhos arregalaram-se, o coração acelerou, o medo cresceu. E pela primeira vez Ana ouviu sua própria voz baixa, rouca e pouca.
“Mãe?”
Não havia nenhuma dor para além da dor do dedo do pé esquerdo. Ana estava um pouco zonza pelo levantar-se de repente, mas não havia dor. Ela olhou para a janela e sentiu que o medo diminuía. Ela tinha que olhar pelas frestas. Talvez pudesse abri-la e ver. Talvez.
O chão estava fresco, não frio. A suave temperatura do solo de um revestimento bege a reconfortou porque com ele veio a idéia de que o dia deveria estar bonito lá fora. O chão estava quase morno; era verão com certeza, porque apenas no verão o chão fica agradável daquele jeito dentro das casas. Ana amava o verão e seu sol cheio de força e vida. Amava os dias longos e as pessoas com roupas leves a passear pelas ruas. No verão havia mais gente na rua e ela adorava este tempo de vestidos levianos, coloridos, suaves e pequenos.
Ana tentou levantar-se da cama, pois queria ver o verão pelas frestas da janela. E ela imaginava uma bela tarde ensolarada a julgar pela luz que entrava pelas frestas, imaginava pessoas nas ruas, e imaginava que alguém dentre todos que passavam pela rua poderia explicar-lhe onde ela estava. Ana imaginava algo bonito quando uma dor infinita invadiu-a. Os ossos da perna esquerda pareciam ruir-se por dentro, e a dor cortou-a sem piedade ou compaixão.
A mulher vestida de verão sentou-se novamente e, assustada, fitava a perna que latejava tremendamente e parecia querer desmanchar-se em pedaços pequenos.
Ana deitou-se, fechou os olhos. Sem forças, sem lágrimas, ela queria esquecer-se de si mesma mais uma vez.

Era noite quando Ana despertou lembrando-se da dor na perna. Apalpou-a com as mãos e sentiu um pequeno oco coberto de pele e uma cicatriz na coxa. “Houve um acidente?”, pensou. Depois de alguns minutos a pensar, a tentar se lembrar de tudo ou de qualquer coisa, Ana decidiu-se levantar mais uma vez. Agora com cuidado; com delicado cuidado com sua perna e apoiando-se nos móveis e na parede, Ana caminhou até a janela azul que agora se mostrava cinzenta.
 Garoava. A menina podia ver pelas frestas da veneziana as finas gotas de chuva e o reflexo da luz no asfalto úmido. Havia uma grande árvore sem frutos defronte de sua janela e um carro, de cor escura e indefinida, estacionado diante de um portão de ferro branco. A rua era estreita e não havia ninguém a caminhar por ela. Era apenas uma pequena rua lateral sem grande importância; sem pés caminhando por ela.
Não adiantava gritar, e Ana ficou calada e parada à janela por minutos a esperar que alguém aparecesse. Como naqueles momentos nos quais não queremos crer que já não temos mais a quem amamos conosco, e esperamos. Esperamos que a pessoa pense melhor e retorne, que os olhos dentro do caixão milagrosamente nos olhem; que o tempo volte. Ana esperou até que a dor de sua perna venceu-a, e ela, derrotada, resignou-se a voltar ao seu lugar neste mundo. Ana deitou-se na cama de metal cinza e deixou-se estar como quem não chega a existir de verdade; como uma sombra.
 Ana não se lembrava de ter comido ou bebido algo. Deveria sentir fome e sede. Onde estava a sua sede se lhe faltava tanta água que seus lábios haviam rachado? Uma pessoa não pode não sentir sede se até a saliva lhe faltava. Os pensamentos tortos de Ana a sufocavam num emaranhado de fios de uma teia espessa. “Eu tenho que ter sede. Eu tenho que sentir sede como toda gente sente sede.”, pensou a mulher assusta.
“ÁGUA!”.  Gritava Ana desesperada. ÁGUA, ÁGUA; água... ahhhhhhhhhhhhhhhh.
Sentada na cama, de pernas estiradas. Ana gritou até não conseguir emitir mais qualquer som. Até que as palavras se tornaram indecifráveis urros de confusão e dor. A mulher do vestido florido não queria estar ali; ela não queria mais existir.

Amanhecera. Ana abriu seus olhos embaçados pelo sono e notou a pequena borboleta amarela a voar pela sala.  De onde viera? Como era lindo ver algo com vida acercar-se depois de tanta solidão. Mesmo que fosse uma vida silenciosa como é a vida das borboletas. Vida leve e colorida. Breve.
O dia estava bonito e a menina podia ver o céu azul pela janela aberta. As venezianas estavam abertas. Apenas um vidro separava Ana do mundo lá fora, pois alguém abrira as venezianas e deixara entrar a pequena borboleta. Por quê?
Um incômodo medo de ter o que não se espera, da mudança, fez com que Ana ficasse quieta. Ela deveria correr, deveria tentar abrir a janela, deveria pedir por socorro, deveria... “Eu deveria saber quem eu sou.”, pensou a jovem mulher. O não saber congelou-a. Melhor do que nada era ter a borboleta a voar pelo quarto e isso a deixou imóvel. Imóvel a esperar que a borboleta se achegasse mais, a esperar que ela pousasse bem perto; sobre ela.
Alheio a qualquer perturbação, o inseto simplesmente voava curioso pelo quarto. O vôo distraiu Ana que, por alguns minutos, deixou tudo de lado: o medo, a dúvida, a dor; e apenas admirou as suaves asas.  Havia apenas a borboleta amarela a voar pela sala d’algum lugar desconhecido. E aquilo era bom, era tão bom que fez Ana sorrir. Então, Ana lembrou-se: a janela estava aberta; pelo menos sua veneziana estava aberta. A menina levantou-se com cautela e caminhou até a janela de onde se via um lindo céu azul de outono.
De repente Ana lembrou-se da dor em sua perna e da unha ausente. A cicatriz já não doía, a perna já não doía e a unha, ainda imperfeita e rugosa, voltara a crescer e ocupava grande parte do dedo maior de seu pé esquerdo. Muito tempo passou sem que ela se desse conta, e pela janela ela vislumbrava a grande árvore do outro lado da rua quase nua. As poucas folhas que ainda se agarravam a seus galhos tinham uma cor marrom desbotada e o chão da calçada estava repleto de tantas folhas que mal podia ser visto em alguns trechos da rua por onde vez ou outra uma pessoa passava.
O chão estava frio e Ana se perguntava por que ela não gritou quando surgiram as primeiras pessoas na rua. Ela não gritou, não bateu no fino vidro; ela não disse nada.  Por que não gritara? Por que gritaria? Ela sabia o que a impediu de dizer qualquer coisa, de gritar, de tentar pedir ajuda. A menina não sabia quem ela era para além de um nome com três letras, e ela sabia que durante o tempo em que estava naquele quarto ninguém apareceu para vê-la. Então, certamente, ela não chegava a ser alguém para ninguém.
O que quer que ela tenha feito ou sido durante seu tempo passado e já esquecido, o fato é que agora Ana estava só. Não havia motivos para fugir; para sair do quarto branco e sem vida para tentar encontrar fora daquelas paredes qualquer coisa que fizesse mais sentido. Ela não saberia para onde ir ou por quem procurar. E se não houvesse ninguém a procurar. Não havia ninguém a procurar num mundo imenso.
Como seria estar só na imensidão? Talvez fosse muito pior do que este quarto; do que sentir-se perdida num pequeno quarto sem cor. Ana voltou para a cama em silêncio e deitou-se de costas para a janela e fechou seus olhos quietos. Não havia mais porque chorar.


sexta-feira, 3 de junho de 2016

Olhos Secos





Olhos Secos


Olhos secos de um sertão imenso abrem-se sem pensamentos,

apenas os tons de laranja e ocre, o vermelho solo rachado

e seus tons de cobre a serpentear diante deles.

Eles enxergam sem nada ver,

enquanto ao longe três imóveis girafas espiam, insólitas,

os olhos perdidos

e as parcas nuvens brancas e sonolentas.

O dia chega ao fim, o fim dos dias aproxima-se em tons fortes

e silenciosos através das árvores nuas de folhas e flores

em nossa planície abandonada por todas as coisas que voam

e que atraem a visão.

Colibris

borboletas

abelhas

libélulas e anjos

foram-se há algum tempo, há muito tempo,

nos tempos em que secou todo o verde e caíram as lágrimas derradeiras

dos olhos coloridos como  a terra

negra.