quinta-feira, 27 de novembro de 2014

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Ana (parte 2)

Parte 2

Pela janela, através de exaustas venezianas de madeira azul claro, entrava delicada luz que tocava o braço direito de Ana. O choro cessara há algum tempo, talvez ela tivesse adormecido mais uma vez; talvez. Não se lembrava desta luz a tocar sua pele assim como não se lembrava de sua vida, de seu nome completo, de onde estava, de qual dia, mês ou ano aquele era. Assim, tão sem lembranças e apenas certa daquilo que não sabia, Ana duvidava até mesmo de sua própria existência.

“Estou mesmo viva?” pensava a menina estática que jazia na cama. “Estou mesmo viva e respiro ou apenas imagino este respirar?”

Ana lembrou-se da falta da unha em seu pé esquerdo e reabriu seus olhos. Era verdade, faltava-lhe uma unha e havia um pequeno bocado enegrecido de sangue que saíra do dedo e escorrera pelo peito do pé. O dedo lhe doía e, portanto, ela estava viva; concluiu Ana. Os não vivos não sentem dor, não sentem nada, e a dor do dedo do pé esquerdo era, naquele momento, um conforto para aquela mulher que não sabia quem era ela e nem onde estava. Havia uma certeza; quiçá a única que qualquer ser humano podia ter nesta vida: Ana sabia-se viva.

Por que havia tanto medo nela? Medo de mover-se, medo de ouvir algo, medo de ver algo para além do vestido florido e da unha ausente. As paredes do quarto eram brancas e nuas como se tivessem sido recém pintadas, e contrastavam com as cansadas venezianas de azul sem vida. Não havia quadros, não havia manchas, não havia nem ao menos um único prego ou gancho que maculasse aquele branco completo e sufocante.

“Onde estou?” pensava a atordoada mente da moça que jazia numa cama barata de metal cinza claro.

Ana abriu a boca, pois percebera os secos lábios rachados e sentiu a urgente necessidade de umedecê-los como se disso dependesse a manutenção de sua vida. A língua de Ana tocou lhe os lábios e percebeu um pequeno corte à direita assim que o sal do sangue invadiu-lhe o paladar.
“Onde estou, meu Deus?” pensou a menina que não ousava falar por medo de que alguém a ouvisse.

Voltaram as lágrimas ao rosto de Ana.




Ana (parte 1)

Parte 1

Ana percebeu-se. Suave e indefinida, apenas uma leve consciência do existir respirava. A menina sabia-se viva, porém não passava de fina consciência todo o saber que a ela lhe cabia. Ana... Ana era a única coisa que dela restara, toda sua identidade, sua consciência resumia-se a três letras – Ana. Com os olhos fechados, pregados pelo medo do que pudessem ver, de tudo o que não poderiam compreender, a mulher jazia numa cama. Braços inertes, pernas inertes. Por algum motivo que ela desconhecia havia um pânico do mover-se. Mover-se doeria? E se sua pele abrisse pelo esforço; pelo desejo agudo dos ossos de rompê-la para fugir dali. Para fugir de um corpo que a eles não pertencia, um corpo do qual a dona não tinha memória e que, mais que ela mesma, lhe parecia um peso; um estorvo.

Passaram-se minutos, dezenas arrastadas deles. Horas de caminhar lento passaram antes que Ana abrisse os olhos castanhos e opacos no exato instante em que a curiosidade tão natural da alma humana venceu o medo. Os olhos viram o branco corpo que não reconheciam, mas que a eles pertencia. Um vestido branco e leve de delicadas flores amarelas e pálidas cobria-lhe o ventre, parte das pernas; a metade das coxas. Os olhos desceram pelas coxas, a canela... A unha do dedo maior do pé esquerdo sumira. O dedo latejava, ou ela imaginava-o a latejar porque é exatamente isso que se espera de um dedo cuja unha foi arrancada. Arrancaram-na? Quando? Por quê?... Por quê?... Por quê?


Os porquês reproduziam-se em ecos doloridos, magoados. Os porquês provocaram lágrimas silenciosas e órfãs. Ana não se reconhecia, e sentia-se dona de uma solidão tão ampla quanto podia ser a solidão de quem não se sabe. O choro ganhou ânimo para afogar os olhos da menina que os tornou a fechar. Ana queria esquecer-se completamente.


segunda-feira, 17 de novembro de 2014

The Gorilla




The Gorilla


Sad gorilla in a cage.

Sad gorilla, so sad is being a sad gorilla that can’t run free.

So big is the world beyond your bars.

So big is everything you can’t see, so big, huge, you could be.

But there’re no rivers for you, no trees,

no cold rain drops to feel falling on your skin on a fever day

or,  your thirst, to kill.

Only being sad, only that…

That’s all you know about being in your small cage,

a place that lacks everything.

Where there’s no space for dreams,

no space for you,

my big black sweet gorilla;

no space  for me.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

13.11.14 (dia do nascimento de passarinhos no céu)


Manoel de Barros



O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Retrato do artista quando coisa

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.

O fazedor de amanhecer

Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.

Tratado geral das grandezas do ínfimo

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

Prefácio

Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
Dependimentos demais
E tarefas muitas —
Os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
Que as moscas iriam iluminar
O silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
Que as moscas não davam conta de iluminar o
Silêncio das coisas anônimas —
Passaram essa tarefa para os poetas.

Os deslimites da palavra

Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas

Aprendimentos

O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura
é o caminho que o homem percorre para se conhecer.
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia de nada.

Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas
di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente
aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs.

E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos
do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara
nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar.

Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles —
esse pessoal.

Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova.
Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis linguísticos que
achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam
que o fascínio poético vem das raízes da fala.

Sócrates falava que as expressões mais eróticas
são donzelas. E que a Beleza se explica melhor
por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei
sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.

domingo, 9 de novembro de 2014

De repente como sempre



Nunca fui muito boa em planejar a vida por motivos diversos. Porque sou sonhadora por natureza e isso me desvia um bocado de qualquer caminho concreto, porque sou indisciplinada e dou valor às coisas mais tolas que pode haver, porque desde menina aprendi que, apesar de todos os planos, a vida cisma em tomar o rumo que ela quer como se dela fossemos donos parciais, porque nunca tive filhos e isso me confere certa irresponsabilidade leviana. Porque sim, porque, teimosa, sou assim.

Deixando os planos apenas para o âmbito profissional, simplesmente por uma exigência sine qua non desta parcela da vida, afinal não há como não planejar o nosso trabalho seja ele qual for. Todo o resto, me parece, acontece e aconteceu muito mais porque assim foi se desdobrando a vida do que por um esforço feito por mim, pois, feito areia da praia, preguiçosa, existo onde a onda me deixa estar.

Então, não planejei a família que tenho, não planejei a casa onde vivo, não planejei o amor desta vida. Tudo foi apenas acontecendo, apresentando-se a mim com uma naturalidade sobrenatural, como algo inexplicavelmente certo; tão certo que, às vezes, eu chego a pensar que sem saber planejei às escondidas, no meu inconsciente, esta vida que tanto se encaixa em quem sou eu. Quiçá assim foi, assim é?

No entanto, gosto de planejar minhas viagens nos menores detalhes, metódica e organizadamente. Ou seja, para sair de minha vida nada planejada, planejo. Por isso, desde o final de 2013 planejávamos, meus pais e eu, a viagem que aconteceria em setembro deste ano quando nós viajaríamos pela Europa juntos. Eu num retorno ao continente que tanto me agrada, eles para pisar pela primeira vez nas terras de onde partiram seus avôs e avós há mais de cem anos atrás.

Porém, e mais uma vez, de nada adiantou guardarmos o dinheiro, providenciarmos os documentos, escolhermos os roteiros, pois, num repente destes de filme, uma reviravolta inesperada e indesejada, a viagem planejada não aconteceu. Ou pelo menos não aconteceu como queríamos, pois para dentro de nós mesmos é que temos nos voltado desde que sabemos que minha mãe está doente. E juntos, ao invés de conhecermos outros países, temos conhecido melhor nossos próprios limites, nossos medos, e uma força teimosa e gigantesca que temos, que até então não sabíamos existir, e que nos deixa prontos para a luta todo santo dia.

De repente, como sempre, a vida mudou seu rumo e cá estamos nós, (minha família, meus amigos e eu), a segui-la. Estamos um pouco a contragosto, é verdade, contudo completamente dispostos a viver esta vida dada por Deus do melhor jeito que sabemos fazer.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

A Lagarta


A Lagarta

Rói pequena e silenciosa lagarta imortal.
Ela não morre, pois nem toda a ciência do mundo
conseguiu até hoje encontrar para tal inimigo uma arma letal.
Por miúdo e calado, tal bicho passa despercebido por dias,
meses,
anos,
e sem sabermos rói,
corrói,
destrói.
Talvez um dia, num destes futuros dos  filmes e dos livros,
uma menina consiga inventar óculos próprios para enxergar lagartas imortais;
talvez.
Eu não os soube inventar porque eu não sabia,
quando eu era menina,
que havia lagartas tão pequenas, caladas  e fatais.
Bichos com a capacidade de nos roer e de fazer o nosso mundo
ruir de dentro para fora em poucas horas.
Eu não sabia.
E hoje, mãe minha, eu apenas queria, como cantou um dia um menino bonito,
poder ser bicho
para comer o bicho que te come.
Rói a lagarta...


domingo, 2 de novembro de 2014

Doce em forma de menina... Mallu.



Me Sinto Ótima

Banda do Mar

Cansei de carregar milhões de medos
Das pessoas que me cercam e pesam de agonia
Eu já tenho lá os meus anseios, os meus receios
Que eu perco com a luz do dia
Eu tenho acordado cedo e me sinto ótima

Eu gosto do gosto da coragem
A melhor viagem é seguir a trilha que eu abri
Eu me achei no colo do meu par
A melhor parte de mim eu acabei de descobrir
E se perguntarem por mim, diga que estou ótima

O que está havendo em mim
Eu já nem sei dizer
Será que a sorte foi onde eu não posso ver
Eu tenho céu de abril
Pra desentristecer
Serei o que sobrar de mim
Sem nada a perder