quarta-feira, 24 de maio de 2017

Das qualidades das saudades



Das qualidades das saudades


Não sei de que cor são as saudades alheias;
as minhas são azuis.
Azul bonito de manhãs sem nuvens dos dias de verão,
tão iluminado, tão claro  
que nos cega quando o olhamos de frente a olho nu.
Não sei de que cor são as saudades alheias, porém,
antes,
eu também não sabia que as saudades haviam de ter uma cor.
Pois elas têm.
Elas têm cor e têm cheiro. As minhas têm cheiro morno de colo
e dos abraços dados pelos seus braços onde eu quis morar.
Eu não sei de que cor são as saudades alheias. Só sei que as minhas
têm cor anil e a amplidão dos horizontes.
As minhas saudades têm cor, cheiro, e têm sabor.
Sabor doce de fruta fresca, comida de pé,
ao pé
do pé das frutas que cresciam nos jardins.
Nêspera, amora, pitanga e jabuticaba. Minhas saudades têm gosto de frutas roubadas,
comidas às escondidas, às gargalhadas.
Não sei qual a qualidade das saudades alheias, e delas pouco me interessa
saber. Porque as minhas são de uma qualidade matreira,
saudades ciumentas e egoístas
que comigo caminham de braço dado
todo santo dia.


domingo, 21 de maio de 2017

Bra$il




Bra$il


O Brasil não é seus políticos; verdade. E isso significa dizer, hoje, que não somos única e exclusivamente uma nação de homens e mulheres corruptos e pouco preocupados com as consequências de nossas ações. Seres tão sedentos por dinheiro e pelo poder que ele nos traz (ou será o oposto disso?) que perdemos todo e qualquer escrúpulo e nos esquecemos dos princípios básicos pertencentes aos homens e mulheres de palavra e com caráter.

Apesar de ser verdade que não somos os nossos políticos, também é fato que não são apenas os nossos políticos a estarem envoltos nos inúmeros escândalos financeiros que pululam em nossa rotina, são? Empresários bem sucedidos, funcionários públicos, profissionais liberais, professores, médicos, artistas e etc. e tal fazem parte de alguns dos muitos “tipos” de brasileiros a roubar o dinheiro público. E a impressão que fica, vivendo em nosso país, é a de que, na maioria dos casos, a honestidade do cidadão brasileiro está muito mais ligada à falta de oportunidade do que por uma questão de caráter.

O fato é que falta-nos, a todos, uma noção mais clara de cidadania e sociedade. O bem comum e o respeito pelo bem público não é algo bem definido e conhecido pelos brasileiros que acreditam terem mais direitos do que deveres. Somos seres importantes, semideuses e, por isso, custa-nos tanto compreender que não podemos dispor do bem público como se nosso fosse. Não chegamos a compreender, desde o pequeno desvio de conduta ao tentar não pagar uma multa de trânsito até o roubo de bilhões, o quão errado é o nosso ato.

O Brasil não é seus políticos; verdade. Contudo e seguramente, o Brasil é o seu povo. E esse, pelo que anda a parecer quando vemos bem de perto, anda a ser bem representado por aqueles que elegemos, não? Talvez não. Talvez haja muito mais gente honesta e de caráter nessa nossa Terra Brasilis do que parece haver. Porém, há que se pensar que tipo de povo nós somos, posto que não está tão claro, nem para nós mesmos, se realmente somos quem pensamos ser.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

A noite




A noite

O céu perdera sua cor habitual, e do azul vivo restavam apenas memórias mornas. Ana olhava a escuridão que crescia ao seu redor enquanto, na memória, resumiam-se em poucas cenas quase importantes todos os anos de sua existência. Seu mundo diminuíra aos poucos e silenciosamente, de forma que por algum tempo ela não notara tal tendência angustiante a todo claustrofóbico. Agora, porém, o vagaroso encolhimento de seus horizontes era um fato e nada poderia detê-lo. Ana aceitou-o, então, sem muito esforço.

As janelas estavam abertas e o mar calado, quieto, respirava com dificuldade em tempos sem ventos; sem movimento. O mundo de Ana, sem vontade, perdera a capacidade de mover-se. Nele tudo se resumia a uma opaca espera sem fatos ou atos onde a ela restava observar, à boa distância, a tudo; a todos. Todos, que um dia importaram à menina que ela fora, haviam partido de uma maneira ou de outra: em viagem, à força, por vontade, pela morte.

Hoje, sem curiosidades para aquilo que acontecia para além de suas terras de horizontes egoístas, Ana não ouvia ao rádio. Faltava-lhe vontade para ligar a televisão e descobrir novas guerras por motivos tão antigos quanto a humanidade. Novidades antigas, repetitivas, não lhe interessavam mais depois de tanto ter brigado na vida. Ana cansara-se de todas as lutas e resolvera que não brigaria mais, não reclamaria mais, não choraria mais. Nada mais.

Atemporal, Billie cantava seus Blues no toca discos enquanto Ana escolhia um novo livro na estante empoeirada para reler. Germinal de Zola capturou seus olhos e o ar pareceu-lhe mais palpável; pesado.  Ana sorriu. Um dia ela também havia acreditado em todas as possibilidades de um Mundo que ainda seria criado. Ela sentou-se à janela, acendeu a luz da luminária antiquada e abriu o grande livro. Etiénne e Catherine ainda respiravam em suas páginas e o mundo de Ana, tão pequeno e preguiçoso, definitivamente, parou.


terça-feira, 9 de maio de 2017

A Esfinge


A Esfinge

Gosto tanto que desgosto.
Gosto tanto que me incomodo com este gostar tão impróprio.
Gosto tanto que por mim e por ti sinto asco;
tenho ódio.
Grito,
Arranho,
Torno-me bicho arredio enfrentando o meu inimigo mais íntimo,
este meu amor sem propósito.
Vastidão imaginada pela minha crença de que a alma poderá ser tudo,
menos pequena,
e que deu vida, (a vida que antes era sua), a um sentimento faminto
que, dono do próprio nariz,
ignora-me.
Gosto tanto de ti que de mim desgosto.
Viro o rosto para onde não estamos,
para não me ver, e para que claramente eu não enxergue
quem é você.
Para fingir que não existe aquilo que sem os olhos,
e sem querer, eu posso ver.
Amo-te com um amor sem tempo, descompassado,
que se acomodou mal no passado,
não encontra seu lugar no meu presente e promete-se
no futuro resistente. Persistente.
Gosto tanto de ti que canibal
devoro-me.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

A Seca



A Seca


Tudo parece igual num continuo tranquilo visto de longe.

A visão panorâmica da janela do meu quarto

mostra um Mundo mudo que não muda.

Ruas iguais com seus carros e suas gentes, cheias do sufocante ruído da cidade

e da costumeira Indiferença

típica de tudo que é grande. Muito maior do que deveria ser.

Mundo grande, país grande, cidade grande...

E a alma da gente fica sem espaço para crescer. Amiúda-se,

encolhe ressecada pela rotina e seca.

Secos seguimos; caminhamos como antes nas mesmas ruas de sempre

tão cheias de carros e de gente.

Porém, de perto, vistos da distância dos meus braços, somos

diferentes.

Não somos os mesmos que riam juntos e que não tinham medo de chorar

porque havia o ombro do outro

que, por obra divina, era meu também nessa vida.

Hoje não conversamos.

Não nos importamos,

e  não nos queremos mais.

Secamos.