segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Ana (parte 5)



Parte 1
Ana percebeu-se. Suave e indefinida, apenas uma leve consciência do existir respirava. A menina sabia-se viva, porém não passava de fina consciência todo o saber que a ela lhe cabia. Ana... Ana era a única coisa que dela restara; toda sua identidade. Sua consciência resumia-se a três letras – Ana. Com os olhos fechados, pregados pelo medo do que pudessem ver, de tudo o que não poderiam compreender. A mulher jazia numa cama. Braços inertes, pernas inertes. Por algum motivo que ela desconhecia havia o medo do mover-se. Mover-se doeria? E se sua pele abrisse pelo esforço; pelo desejo agudo dos ossos de rompê-la para fugir dali. Para fugir de um corpo que a eles não pertencia, um corpo do qual a dona não tinha memória e que, mais que ela mesma, lhe parecia um peso; um estorvo.
Passaram-se minutos, dezenas arrastadas deles. Horas de caminhar lento passaram antes que Ana abrisse os olhos castanhos e opacos no exato instante em que a curiosidade tão natural da alma humana venceu o medo. Os olhos viram o branco corpo que não reconheciam, mas que a eles pertencia. Um vestido branco e leve de delicadas flores amarelas e pálidas cobria-lhe o ventre, parte das pernas; a metade das coxas. Os olhos desceram pelas coxas, a canela... A unha do dedo maior do pé esquerdo sumira. O dedo latejava, ou ela imaginava-o a latejar porque é exatamente isso que se espera de um dedo cuja unha foi arrancada. Arrancaram-na? Quando? Por quê?...
Os porquês reproduziam-se em ecos doloridos, magoados. Os porquês provocaram lágrimas silenciosas e órfãs. Ana não se reconhecia, e sentia-se dona de uma solidão tão ampla quanto podia ser a solidão de quem não se sabe. O choro ganhou ânimo para afogar os olhos da menina que os tornou a fechar. Ana queria esquecer-se completamente.

Parte 2
Pela janela, através de exaustas venezianas de madeira azul clara, entrava delicada luz que tocava o braço direito de Ana. O choro cessara há algum tempo, talvez ela tivesse adormecido mais uma vez; talvez. Não se lembrava desta luz a tocar sua pele assim como não se lembrava de sua vida, de seu nome completo, de onde estava, de qual era o dia, mês ou ano. Desta maneira, tão sem lembranças e apenas certa daquilo que não sabia, Ana duvidava até mesmo de sua própria existência.
“Estou mesmo viva?” pensava a menina estática que jazia na cama. “Estou mesmo viva e respiro ou apenas imagino este respirar?”
Ana lembrou-se da falta da unha em seu pé esquerdo e reabriu seus olhos. Era verdade, faltava-lhe uma unha e havia um pequeno bocado enegrecido de sangue que saíra do dedo e escorrera pelo peito do pé. O dedo lhe doía e, portanto, ela estava viva; concluiu Ana. Tudo que não está vivo não sente dor, não sente nada. E a dor do dedo do pé esquerdo era, naquele momento, um conforto para aquela mulher que não sabia quem era ela e nem onde estava. Havia uma certeza; quiçá a única que qualquer ser humano podia ter nesta vida: Ana sabia-se viva. E sua certeza era concreta porque seu dedo doía.
Por que havia tanto medo nela? Medo de mover-se, medo de ouvir algo, medo de ver algo para além do vestido florido e da unha ausente. As paredes do quarto eram brancas e nuas como se tivessem sido recém pintadas e contrastavam com as cansadas venezianas de azul sem vida. Não havia quadros, não havia manchas, não havia nem ao menos um único prego ou gancho que maculasse aquele branco completo e sufocante.
“Onde estou?” pensava a atordoada mente da moça que jazia numa cama barata de metal cinza claro.
Ana abriu a boca, pois percebera os secos lábios rachados e sentiu a urgente necessidade de umedecê-los para que a fina pele não se rompesse. A língua de Ana tocou lhe os lábios e percebeu um pequeno corte à direita através do sal do sangue que lhe invadiu o paladar.
“Onde estou, meu Deus?” pensou a menina que não ousava falar por medo de que alguém a ouvisse.
Voltaram as lágrimas ao rosto de Ana.

Parte 3
Ana tentou acalmar-se, conter o pranto; pensar. Pensar o quê? Não sabia. Sabia apenas que jazia na cama com medo, que lhe faltava uma unha, que a boca estava ferida e que emagrecera. Emagrecera? Como podia ser dona desta impressão se não se lembrava de nada? Mais que um fato, aquela era uma sensação. Ana sentia que tinha sido maior, que havia alguma carne no corpo que agora parecia seco. Ela estava seca. “Como alguém seco chora?”, pensou.
Então, a menina chorou sem lágrimas sentindo a mágoa a invadir-lhe, a dor a abraçá-la. Havia tanto silêncio e solidão. Tanto silêncio que parecia que o mundo deixara de existir.
“O que existe por detrás da janela azul?”, perguntou-se. “O quê?”
Por alguns instantes a mulher de vestido florido e gasto tentou ouvir o mundo afiando os ouvidos. Nada. Ana não entendia como podia haver tanto silêncio e lembrou-se da mãe. De uma mãe sem rosto definido e que era sua mãe porque a chamava de filha. Ela quase podia ouvir-la naquele instante e ela, como toda gente, devia ter uma mãe. Onde estava a sua mãe que não estava aqui ao seu lado? Todas as mães ficam ao lado de seus filhos nos momentos difíceis, e aquele era um momento difícil. Muito difícil.
“Qual o nome de minha mãe?”
“Pareço-me com ela?”
“Está viva?”
“Por que não está aqui agora?”
Eram tantas as perguntas que atormentavam sua cabeça que Ana sentiu-se irritada; com raiva. E num impulso sem qualquer medo ou pensamento, sentou-se na cama. Seus olhos arregalaram-se, o coração acelerou, o medo cresceu. E pela primeira vez Ana ouviu sua própria voz baixa, rouca e pouca.
“Mãe?”
Não havia nenhuma dor para além da dor do dedo do pé esquerdo. Ana estava um pouco zonza pelo levantar-se de repente, mas não havia dor. Ela olhou para a janela e sentiu que o medo diminuía. Ela tinha que olhar pelas frestas. Talvez pudesse abri-la e ver. Talvez.
O chão estava fresco, não frio. A suave temperatura do solo de um revestimento bege a reconfortou porque com ele veio a idéia de que o dia deveria estar bonito lá fora. O chão estava quase morno; era verão com certeza, porque apenas no verão o chão fica agradável daquele jeito dentro das casas. Ana amava o verão e seu sol cheio de força e vida. Amava os dias longos e as pessoas com roupas leves a passear pelas ruas. No verão havia mais gente na rua e ela adorava este tempo de vestidos levianos, coloridos, suaves e pequenos.
Ana tentou levantar-se da cama, pois queria ver o verão pelas frestas da janela. E ela imaginava uma bela tarde ensolarada a julgar pela luz que entrava pelas frestas, imaginava pessoas nas ruas, e imaginava que alguém dentre todos que passeavam pela rua poderia explicar-lhe onde ela estava. Ana imaginava algo bonito quando uma dor infinita invadiu-a. Os ossos da perna esquerda pareciam ruir-se por dentro, e a dor cortou-a sem piedade ou compaixão.
A mulher vestida de verão sentou-se novamente e, assustada, fitava a perna que latejava tremendamente e parecia querer desmanchar-se em pedaços pequenos.
Ana deitou-se, fechou os olhos. Sem forças, sem lágrimas, ela queria esquecer-se de si mesma mais uma vez.

Parte 4
Era noite quando Ana despertou lembrando-se da dor na perna. Apalpou-a com as mãos e sentiu um pequeno oco coberto de pele e uma cicatriz na coxa. “Houve um acidente?”, pensou. Depois de alguns minutos a pensar, a tentar se lembrar de tudo ou de qualquer coisa, Ana decidiu-se levantar mais uma vez. Agora com cuidado; com delicado cuidado com sua perna e apoiando-se nos móveis e na parede, Ana caminhou até a janela azul que agora se mostrava cinzenta.
 Garoava. A menina podia ver pelas frestas da veneziana as finas gotas de chuva e o reflexo da luz no asfalto úmido. Havia uma grande árvore sem frutos defronte de sua janela e um carro, de cor escura e indefinida, estacionado diante de um portão de ferro branco. A rua era estreita e não havia ninguém a caminhar por ela. Era apenas uma pequena rua lateral sem grande importância; sem pés caminhando por ela.
Não adiantava gritar, e Ana ficou calada e parada à janela por minutos a esperar que alguém aparecesse. Como naqueles momentos nos quais não queremos crer que já não temos mais à quem amamos conosco e esperamos. Esperamos que a pessoa pense melhor e retorne, que os olhos dentro do caixão milagrosamente nos olhem; que o tempo volte. Ana esperou até que a dor de sua perna venceu-a, e ela, derrotada, resignou-se a voltar ao seu lugar neste mundo. Ana deitou-se na cama de metal cinza e deixou-se estar como quem não chega a existir de verdade; como uma sombra.
 Ana não se lembrava de ter comido ou bebido algo. Deveria sentir fome e sede. Onde estava a sua sede se lhe faltava tanta água que seus lábios haviam rachado? Uma pessoa não pode não sentir sede se até a saliva lhe faltava. Os pensamentos tortos de Ana a sufocavam num emaranhado de fios de uma teia espessa. “Eu tenho que ter sede. Eu tenho que sentir sede como toda gente sente sede.”, pensou a mulher assusta.
“ÁGUA!”.  Gritava Ana desesperada. ÁGUA, ÁGUA; água... ahhhhhhhhhhhhhhhh.
Sentada na cama, de pernas estiradas. Ana gritou até não conseguir emitir mais qualquer som. Até que as palavras se tornaram indecifráveis urros de confusão e dor. A mulher do vestido florido não queria estar ali; ela não queria mais existir.

Parte 5
Amanhecera. Ana abriu seus olhos embaçados pelo sono e notou a pequena borboleta amarela a voar pela sala.  De onde viera? Como era lindo ver algo com vida acercar-se depois de tanta solidão. Mesmo que fosse uma vida silenciosa como é a vida das borboletas. Vida leve e colorida. Breve.
O dia estava bonito e a menina podia ver o céu azul pela janela aberta. A janela estava aberta. Apenas um vidro separava Ana do mundo lá fora, pois alguém abrira as venezianas e deixara entrar a pequena borboleta. Por quê?
Um incômodo medo do que não se espera, da mudança, fez com que Ana ficasse quieta. Ela deveria correr, deveria tentar abrir a janela, deveria pedir por socorro, deveria... “Eu deveria saber quem eu sou.”, pensou a jovem mulher. O não saber congelou-a. Melhor do que nada era ter a borboleta a voar pelo quarto e isso a deixou imóvel. Imóvel a esperar que a borboleta se achegasse mais, a esperar que ela pousasse bem perto; sobre ela.

Alheio a qualquer perturbação, o inseto simplesmente voava curioso pelo quarto. O vôo distraiu Ana que, por alguns minutos, deixou tudo de lado: o medo, a dúvida, a dor; e apenas admirou as suaves asas.  Havia apenas a borboleta amarela a voar pela sala d’algum lugar desconhecido. E aquilo era bom, era tão bom que fez Ana sorrir. Então, Ana lembrou-se: a janela estava aberta; pelo menos sua veneziana estava aberta. A menina levantou-se com cautela e caminhou até a janela de onde se via um lindo céu azul de outono. 

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Relógio de Repetição



Relógio de Repetição

Erro, sei que erro.
Relógio de repetição de mim mesma,
repito-me num eco consciente 
a cometer os mesmos erros de sempre.
Passa o tempo e continuo no mesmo minuto insensato,
o instante em que a razão fechou seus olhos,
o momento no qual eu,
de ponteiros frouxos,  tomei gosto pelo rodar
sem o avançar das horas.
Os dias são iguais,
os meses são iguais,
os anos são iguais...
Mudam  suas formas apenas as minhas saudades glutonas
que engordam e já não enxergam seus próprios pés
pequenos,
imóveis.
Falta-me a inteligência,
faz-me falta a força
para empurrar as tais senhoras porta afora.
E por cá as saudades moram,
sentadas na minha sala de estar, a repetir
as mesmas ladainhas
tão minhas.
Erro. Eu sei que erro.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

DINDI... de Jobin por Bethânia



Dindí
Tom Jobim
 
Céu, tão grande é o céu
E bandos de nuvens que passam ligeiras
Prá onde elas vão, ah, eu não sei, não sei
E o vento que toca nas folhas
Contando as histórias que são de ninguém
Mas que são minhas e de você também
Ai, Dindí
Se soubesses o bem que eu te quero
O mundo seria, Dindí, tudo, Dindí, lindo, Dindí
Ai, Dindí
Se um dia você for embora me leva contigo, Dindí
Olha, Dindí, fica, Dindí
E as águas desse rio
Aonde vão, eu não sei
A minha vida inteira, esperei, esperei por você, Dindí
Que é a coisa mais linda que existe
É você não existe, Dindí
Deixa, Dindí, que eu te adore,
Dindí



quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Pequeno Mundo



Pequeno Mundo

O mundo ficou estranhamente pequeno,
apertado, e se descoloriu
no dia em que seus olhos se fecharam para não
me ver mais; nunca mais.
E eu, desde então, apenas sinto que este mundo
tão pequeno
não é o meu. Ele não me pertence,
eu nele não caibo mais como cabia,
sou um triste gigante de roupas apertadas e passos desengonçados
com medo de caminhar.
Mãe, não sei mais tudo que eu sabia,
não sei o que dizer em tantas horas neste novo mundo
e, então, calo. Quieta eu fico, eu sou
quando me lembro do dia em que fechei seus olhos
para não os ver mais; nunca mais.
Estranho me lembrar que te fizemos semente,
mais uma vez,
e te pusemos, flor, num estranho jardim aonde eu
não quero ir. Onde as flores não nascem,
apenas são guardadas.
De agora em diante sou metade, minha flor,
sou o quase,
e falta-me uma parte tão grande que não sei se sou eu mesma.
Sem você,
eu ainda preciso aprender a ser.

domingo, 16 de agosto de 2015

O pra sempre... Sempre acaba...



O pra sempre... Sempre acaba...

Queríamos que fosse diferente e que o passar do tempo não tirasse nada nunca da gente; que o pra sempre fosse verdadeiramente eterno para que não tivéssemos que dizer adeus para ninguém. Muito menos a quem amamos, menos ainda para quem amamos tão profundamente que fica complicado perceber como o Mundo ainda está a girar se ela por cá não anda mais. Isso é difícil, difícil demais para explicar. Mas é assim que as coisas são: um dia partimos sem muita explicação e não há nada que se possa fazer para mudar tal fato. Portanto, antes de tudo, temos que aceitar que o pra sempre, sempre acaba.

Minha mãe, minha Mi, partiu esta semana e, apesar de ser muito difícil falar sobre o tal fato, sinto que é importante fazê-lo por uma boa razão: porque minha mãe sempre será uma mulher fantástica e me é muito importante me lembrar dela. Minha mãe foi, e sempre será, uma mulher genialmente múltipla, multifacetada. (Sorriso.) Ela acharia, com certeza, uma palhaçada isso de “multifacetada”, e daria de ombros para uma palavra tão complicada como esta para explicá-la. Porém, a realidade é que minha mãe teve sempre qualidades que parecem, num primeiro momento não combinarem por soarem contrárias.

Mi era tão forte e carinhosa ao mesmo tempo, divertida e brava, sincera até doer e gentil; antes e acima de tudo, minha mãe era amorosa e verdadeira. A minha Mi sempre foi genuinamente ela mesma a dizer tudo que lhe passava pela cabeça e pelo coração. Minha mãe foi uma menina maluquinha linda de se ver; divertida e dona do próprio nariz como ninguém. Fácil, não, ela não era fácil. Ela era de verdade, mais de carne e osso que muita gente. Mulher de sangue vermelho e quente, de olhos doces e verdes; tão pequena e de espírito tão forte que, às vezes, tanta força espantava a gente. Nada, nunca, pôde parar a Mi nesta vida até seus últimos minutos no planeta azul. A baixinha mandava na casa e amava a toda a gente que por ela passou.

Por isso, quando, um ano atrás mais ou menos, soubemos do tal câncer inexplicável no pulmão, pedi a Deus que minha mãe não sofresse e que pudesse viver bem até o fim porque era isso que ela merecia. O tempo que tínhamos era lá com Ele, prometi não reclamar. Prometi aceitar. Na manhã da última quarta-feira, minha mãe e eu conversamos na sala enquanto eu tomava o café da manhã e ela assistia à televisão. Ela foi conosco à cozinha e, sentada numa cadeira, deu as ordens enquanto meu pai e eu fazíamos o almoço. Ela brigou comigo e eu com ela, como sempre. Ela almoçou e fez planos para a tarde apesar do fato de ser muito difícil para ela respirar. Ela escovou os dentes e foi, com a ajuda de meu pai e eu, ao sofá da sala de TV. Ela sentou-se com nossa ajuda, fechou seus olhos e deixou-se ir com uma lágrima. Lentamente, a Mi parou de respirar.

Com minha mãe aprendi a amar ilimitadamente, a sonhar, a gostar de flor e passarinho, a falar o que penso e a rir alto, a enfrentar a vida e a morte sem medo. Por isso, agora, apesar da saudade doída que sinto e da falta danada que ela já me faz, gosto de pensar que ela está com minhas avós, Estela e Luiza, em algum lugar cheio de flores. Não posso imaginar um lugar sem flores para a minha mãe estar. Agora, ao invés de usar palavras para falar com ela eu converso com a Mi em pensamento e dá-me um pouco de medo pensar que ela está lá no céu, o além-mar onde ela está e aonde eu não posso chegar, a descobrir todos os meus segredos porque agora ela consegue ler meus pensamentos. Não quero nem ver o tanto de broncas que vou receber quando, um dia, nos reencontrarmos. Ela vai brigar muito comigo, mas depois vai me abraçar muito mais.

Mi, minha Mima, queríamos mais tempo, eu sei. Porém, agradeço a Deus por tudo ter sido como foi. Por termos feito tantas coisas juntas, pela vida ter sido boa e bonita até o fim, por todos os beijinhos, pelo colo que tive sempre e pelo carinho que nunca me faltou.

Amo-te muito e para sempre.
Amamos-te muito e para sempre. Fica bem, amor nosso. Amor meu, fica com Deus.


À minha mãe, Odila Jorge Paroli; nossa menina.

















sábado, 8 de agosto de 2015

A filhinha do Papai



O dia dos pais não existiria sem as mães, e disso todo mundo sabe. Mãe é mãe e ponto final. É aquele ser humano incomparável que nos acolhe em qualquer situação, para quem sempre corremos, aquela que recebe os presentes mais bonitos e a maior parte dos beijinhos. E para todo mundo que tem mãe, porque infelizmente há aqueles que não a tiveram (ou têm) por algum motivo, não se faz necessário explicar a importância desta figura. O mundo pode pertencer aos homens, mas os filhos, sejam eles meninos ou meninas, pertencem às mães. Elas são geniais!

Então, aos pobres dos pais sobra a figura de coadjuvante de luxo. O pai é aquele que não está em casa quando somos pequenos, pois, geralmente é quem trabalha mais. Ele é a pessoa que briga conosco, os filhos, com mais freqüência por conta das notas na escola, das saídas noturnas, do dinheiro gasto, dos namorados e de todo o etc. e tal que se possa imaginar. Sem a sutileza materna, o pai torna-se o monstro insensível que não nos compreende nunca durante uns dez anos mais ou menos; pelo menos.

Contudo, a verdade, é que depois que termina a adolescência compreendemos que os pais sentem-se os responsáveis por todos nós, pela família inteira, e esta é uma responsabilidade grande demais. A maior delas. Eles nos protegem, nos dão uma casa e tudo que há nela. Eles nos provêem tudo o que precisamos e, no final das contas, toda a braveza apenas significa que eles se preocupam conosco o tempo todo e não sabem muito bem como lidar com tudo isso sem se estressar. Somos, (filhos e mamãe), a vida dos nossos pais.

Bom, talvez a minha idéia do que representa o pai seja antiga e irreal para muita gente.  Mas foi sempre assim para mim. Bem ao padrão da família modelo da minha infância, eu tive um pai bravo que não precisava de palavras, pois bastava o seu olhar para que meu irmão e eu ficássemos bem quietinhos. Ele foi a pessoa que me disse não mais vezes na vida e quem odiou, do fundo de seu coração, o primeiro rapaz que eu apresentei como meu namorado até aceitar que o tal menino era quase bom o bastante e podia estar ali ao meu lado.

Amamos nossas mães e pais com igual intensidade e de formas diferentes porque se mãe é mãe, pai também é pai, e ninguém poderá substituir qualquer um deles nunca.  Quando adultos, como nossos pais já o sabem há muito tempo, nós (os filhos) por fim compreendemos que eles também são a vida da gente. E este é um tempo muito bom. Bom, eu, por minha parte, até hoje adoro ser a filhinha do papai; a sua menina. E ele é, até hoje, o homem a quem eu mais amo e em quem eu mais confio; meu eterno herói sem capa ou espada.

Por isso, vai aqui um beijo cheio de carinho ao meu pai (e à Mima também), aos meus amigos que são pais, e ao meu irmão que é um pai bom demais da conta para o Nico e para a Vitória. (Tatinho, tenho muito orgulho do pai que você é.)


Feliz Dia dos Pais!

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Kodaikanal Won't!



The voice of a girl from India...


Ana (parte 4)



Parte 1

Ana percebeu-se. Suave e indefinida, apenas uma leve consciência do existir respirava. A menina sabia-se viva, porém não passava de fina consciência todo o saber que a ela lhe cabia. Ana... Ana era a única coisa que dela restara; toda sua identidade. Sua consciência resumia-se a três letras – Ana. Com os olhos fechados, pregados pelo medo do que pudessem ver, de tudo o que não poderiam compreender. A mulher jazia numa cama. Braços inertes, pernas inertes. Por algum motivo que ela desconhecia havia o medo do mover-se. Mover-se doeria? E se sua pele abrisse pelo esforço; pelo desejo agudo dos ossos de rompê-la para fugir dali. Para fugir de um corpo que a eles não pertencia, um corpo do qual a dona não tinha memória e que, mais que ela mesma, lhe parecia um peso; um estorvo.

Passaram-se minutos, dezenas arrastadas deles. Horas de caminhar lento passaram antes que Ana abrisse os olhos castanhos e opacos no exato instante em que a curiosidade tão natural da alma humana venceu o medo. Os olhos viram o branco corpo que não reconheciam, mas que a eles pertencia. Um vestido branco e leve de delicadas flores amarelas e pálidas cobria-lhe o ventre, parte das pernas; a metade das coxas. Os olhos desceram pelas coxas, a canela... A unha do dedo maior do pé esquerdo sumira. O dedo latejava, ou ela imaginava-o a latejar porque é exatamente isso que se espera de um dedo cuja unha foi arrancada. Arrancaram-na? Quando? Por quê?...

Os porquês reproduziam-se em ecos doloridos, magoados. Os porquês provocaram lágrimas silenciosas e órfãs. Ana não se reconhecia, e sentia-se dona de uma solidão tão ampla quanto podia ser a solidão de quem não se sabe. O choro ganhou ânimo para afogar os olhos da menina que os tornou a fechar. Ana queria esquecer-se completamente.


Parte 2

Pela janela, através de exaustas venezianas de madeira azul clara, entrava delicada luz que tocava o braço direito de Ana. O choro cessara há algum tempo, talvez ela tivesse adormecido mais uma vez; talvez. Não se lembrava desta luz a tocar sua pele assim como não se lembrava de sua vida, de seu nome completo, de onde estava, de qual era o dia, mês ou ano. Desta maneira, tão sem lembranças e apenas certa daquilo que não sabia, Ana duvidava até mesmo de sua própria existência.

“Estou mesmo viva?” pensava a menina estática que jazia na cama. “Estou mesmo viva e respiro ou apenas imagino este respirar?”

Ana lembrou-se da falta da unha em seu pé esquerdo e reabriu seus olhos. Era verdade, faltava-lhe uma unha e havia um pequeno bocado enegrecido de sangue que saíra do dedo e escorrera pelo peito do pé. O dedo lhe doía e, portanto, ela estava viva; concluiu Ana. Tudo que não está vivo não sente dor, não sente nada. E a dor do dedo do pé esquerdo era, naquele momento, um conforto para aquela mulher que não sabia quem era ela e nem onde estava. Havia uma certeza; quiçá a única que qualquer ser humano podia ter nesta vida: Ana sabia-se viva. E sua certeza era concreta porque seu dedo doía.

Por que havia tanto medo nela? Medo de mover-se, medo de ouvir algo, medo de ver algo para além do vestido florido e da unha ausente. As paredes do quarto eram brancas e nuas como se tivessem sido recém pintadas e contrastavam com as cansadas venezianas de azul sem vida. Não havia quadros, não havia manchas, não havia nem ao menos um único prego ou gancho que maculasse aquele branco completo e sufocante.

“Onde estou?” pensava a atordoada mente da moça que jazia numa cama barata de metal cinza claro.
Ana abriu a boca, pois percebera os secos lábios rachados e sentiu a urgente necessidade de umedecê-los para que a fina pele não se rompesse. A língua de Ana tocou lhe os lábios e percebeu um pequeno corte à direita através do sal do sangue que lhe invadiu o paladar.

“Onde estou, meu Deus?” pensou a menina que não ousava falar por medo de que alguém a ouvisse.
Voltaram as lágrimas ao rosto de Ana.


Parte 3

Ana tentou acalmar-se, conter o pranto; pensar. Pensar o quê? Não sabia. Sabia apenas que jazia na cama com medo, que lhe faltava uma unha, que a boca estava ferida e que emagrecera. Emagrecera? Como podia ser dona desta impressão se não se lembrava de nada? Mais que um fato, aquela era uma sensação. Ana sentia que tinha sido maior, que havia alguma carne no corpo que agora parecia seco. Ela estava seca. “Como alguém seco chora?”, pensou.

Então, a menina chorou sem lágrimas sentindo a mágoa a invadir-lhe, a dor a abraçá-la. Havia tanto silêncio e solidão. Tanto silêncio que parecia que o mundo deixara de existir.

“O que existe por detrás da janela azul?”, perguntou-se. “O quê?”

Por alguns instantes a mulher de vestido florido e gasto tentou ouvir o mundo afiando os ouvidos. Nada. Ana não entendia como podia haver tanto silêncio e lembrou-se da mãe. De uma mãe sem rosto definido e que era sua mãe porque a chamava de filha. Ela quase podia ouvir-la naquele instante e ela, como toda gente, devia ter uma mãe. Onde estava a sua mãe que não estava aqui ao seu lado? Todas as mães ficam ao lado de seus filhos nos momentos difíceis, e aquele era um momento difícil. Muito difícil.

“Qual o nome de minha mãe?”
“Pareço-me com ela?”
“Está viva?”
“Por que não está aqui agora?”

Eram tantas as perguntas que atormentavam sua cabeça que Ana sentiu-se irritada; com raiva. E num impulso sem qualquer medo ou pensamento, sentou-se na cama. Seus olhos arregalaram-se, o coração acelerou, o medo cresceu. E pela primeira vez Ana ouviu sua própria voz baixa, rouca e pouca.

“Mãe?”

Não havia nenhuma dor para além da dor do dedo do pé esquerdo. Ana estava um pouco zonza pelo levantar-se de repente, mas não havia dor. Ela olhou para a janela e sentiu que o medo diminuía. Ela tinha que olhar pelas frestas. Talvez pudesse abri-la e ver. Talvez.

O chão estava fresco, não frio. A suave temperatura do solo de um revestimento bege a reconfortou porque com ele veio a idéia de que o dia deveria estar bonito lá fora. O chão estava quase morno; era verão com certeza, porque apenas no verão o chão fica agradável daquele jeito dentro das casas. Ana amava o verão e seu sol cheio de força e vida. Amava os dias longos e as pessoas com roupas leves a passear pelas ruas. No verão havia mais gente na rua e ela adorava este tempo de vestidos levianos, coloridos, suaves e pequenos.

Ana tentou levantar-se da cama, pois queria ver o verão pelas frestas da janela. E ela imaginava uma bela tarde ensolarada a julgar pela luz que entrava pelas frestas, imaginava pessoas nas ruas, e imaginava que alguém dentre todos que passeavam pela rua poderia explicar-lhe onde ela estava. Ana imaginava algo bonito quando uma dor infinita invadiu-a. Os ossos da perna esquerda pareciam ruir-se por dentro, e a dor cortou-a sem piedade ou compaixão.

A mulher vestida de verão sentou-se novamente e, assustada, fitava a perna que latejava tremendamente e parecia querer desmanchar-se em pedaços pequenos.
Ana deitou-se, fechou os olhos. Sem forças, sem lágrimas, ela queria esquecer-se de si mesma mais uma vez.


Parte 4

Era noite quando Ana despertou lembrando-se da dor na perna. Apalpou-a com as mãos e sentiu um pequeno oco coberto de pele e uma cicatriz na coxa. “Houve um acidente?”, pensou. Depois de alguns minutos a pensar, a tentar se lembrar de tudo ou de qualquer coisa, Ana decidiu-se levantar mais uma vez. Agora com cuidado, com delicado cuidado com sua perna e apoiando-se nos móveis e na parede, Ana caminhou até a janela azul que agora se mostrava cinzenta.

 Garoava. A menina podia ver pelas frestas da veneziana as finas gotas de chuva e o reflexo da luz no asfalto úmido. Havia uma grande árvore sem frutos defronte de sua janela e um carro, de cor escura e indefinida, estacionado diante de um portão de ferro branco. A rua era estreita e não havia ninguém a caminhar por ela. Era apenas uma pequena rua lateral sem grande importância e sem pés caminhando por ela.

Não adiantava gritar, e Ana ficou calada e parada à janela por minutos à espera de que alguém aparecesse. Como naqueles momentos nos quais não queremos crer que já não temos mais a quem amamos conosco e esperamos. Esperamos que a pessoa pense melhor e volte, que a carta que comunicara a morte seja nada mais que um equivoco por uma troca de nomes, que os olhos dentro do caixão milagrosamente nos olhem. Ana esperou até que a dor de sua perna venceu-a, e ela, derrotada, resignou-se a voltar ao seu lugar neste mundo. Ana deitou-se na cama de metal cinza e deixou-se estar como quem não chega a existir de verdade; como uma sombra.

 Ana não se lembrava de ter comido ou bebido algo. Deveria sentir fome e sede. Onde estava a sua sede se lhe faltava tanta água que seus lábios haviam rachado? Uma pessoa não pode não sentir sede se até a saliva lhe faltava. Os pensamentos tortos de Ana a sufocavam num emaranha de fios de uma teia de aranha espessa. “Eu tenho que ter sede. Eu tenho que sentir sede como toda gente sente sede.”, pensou a mulher assusta.

“ÁGUA!”.  Gritava Ana desesperada. ÁGUA, ÁGUA; água... ahrrrrrr. Sentada na cama, de pernas estiradas. Ana gritou até não conseguir emitir mais qualquer som. Até que as palavras se tornaram indecifráveis urros de confusão e dor. A mulher do vestido florido não queria estar ali; ela não queria mais existir.