quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Ciranda da Bailarina





Clariceando

 





Alma luz

Minha alma tem o peso da luz

Tem o peso da música

Tem o peso da palavra nunca dita,

Prestes quem sabe a ser dita

Tem o peso de uma lembrança

Tem o peso de uma saudade

Tem o peso de um olhar

Pesa como pesa uma ausência

E a lágrima que não chorou

Tem o imaterial peso de uma solidão

No meio de outros

 


A lucidez perigosa

Estou sentindo uma clareza tão grande

que me anula como pessoa atual e comum:

é uma lucidez vazia, como explicar?

assim como um cálculo matemático perfeito

do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer

vendo claramente o vazio.

E nem entendo aquilo que entendo:

pois estou infinitamente maior que eu mesma,

e não me alcanço.

Além do que:

que faço dessa lucidez?

Sei também que esta minha lucidez

pode-se tornar o inferno humano

– já me aconteceu antes. Pois sei que

– em termos de nossa diária

e permanente acomodação

resignada à irrealidade –

essa clareza de realidade

é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus,

porque ela não me serve

para viver os dias.

Ajudai-me a de novo consistir

dos modos possíveis.

Eu consisto,

eu consisto,

amém.

 


Dá-me a tua mão

Dá-me a tua mão:

Vou agora te contar

como entrei no inexpressivo

que sempre foi a minha busca cega e secreta.

De como entrei

naquilo que existe entre o número um e o número dois,

de como vi a linha de mistério e fogo,

e que é linha sub-reptícia.

 

Entre duas notas de música existe uma nota,

entre dois fatos existe um fato,

entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam

existe um intervalo de espaço,

existe um sentir que é entre o sentir

– nos interstícios da matéria primordial

está a linha de mistério e fogo

que é a respiração do mundo,


Clarice Lispector

domingo, 17 de outubro de 2021

Seguimos

 

Seguimos


À mingua sem cama sem língua

Nem uma ínfima gota da tua saliva

Solo seco

Seco eu a solo

Nesta vida sem inventos

Sigo

Tu segues

Cegos ambos à fantasia de uma vida de flores,

borboletas e andorinhas

Este inesperado encontro para além do conjunto espaço-tempo que nos continha

Foi um grande susto

Justo

Injusto, como saber o que fazer quando nada se sabia?

Não soubemos

Seguimos, não conseguimos seguir a acreditar que a vida é muito mais do que

aquilo que se pode explicar

ficas tu

e assim fico

à mingua, sem o colo das palavras faladas, cantadas e encantadas

que me faziam acreditar

que o amor não é apenas uma tola mentira

que nos agrada contar.

 

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Preta, meu Cordel





do Fogo Encantado.






Poema Enjoadinho (aos meus miúdos de coração)


Filhos... Filhos?

Melhor não tê-los!

Mas se não os temos

Como sabê-los?

Se não os temos

Que de consulta

Quanto silêncio

Como os queremos!

Banho de mar

Diz que é um porrete...

Cônjuge voa

Transpõe o espaço

Engole água

Fica salgada

Se iodifica

Depois, que boa

Que morenaço

Que a esposa fica!

Resultado: filho.

E então começa

A aporrinhação:

Cocô está branco

Cocô está preto

Bebe amoníaco

Comeu botão.

Filhos? Filhos

Melhor não tê-los

Noites de insônia

Cãs prematuras

Prantos convulsos

Meu Deus, salvai-o!

Filhos são o demo

Melhor não tê-los...

Mas se não os temos

Como sabê-los?

Como saber

Que macieza

Nos seus cabelos

Que cheiro morno

Na sua carne

Que gosto doce

Na sua boca!

Chupam gilete

Bebem xampu

Ateiam fogo

No quarteirão

Porém, que coisa

Que coisa louca

Que coisa linda

Que os filhos são!


Ao tempo

 


Ao tempo

Devora-me, tempo

Pele, ossos e nervos

Levando cotidianamente um pouco de mim

Eu, que me deixo levar de bom grado

Sem medos,

Sem termos,

De braços dados a si

Caminho,

Construo com suas entranhas meu mundo enquanto

Devora-me,

e de si alimento-me engordando pensamentos

ganhando peso na terra

ganhando cores meus sonhos

Estamos ambos a caminho do fim, sem pressa, a ouvir as águas deste riacho de pedrinhas coloridas,

um tanto preguiçoso,

muito claro.

Seguir.