terça-feira, 25 de novembro de 2014

Ana (parte 1)

Parte 1

Ana percebeu-se. Suave e indefinida, apenas uma leve consciência do existir respirava. A menina sabia-se viva, porém não passava de fina consciência todo o saber que a ela lhe cabia. Ana... Ana era a única coisa que dela restara, toda sua identidade, sua consciência resumia-se a três letras – Ana. Com os olhos fechados, pregados pelo medo do que pudessem ver, de tudo o que não poderiam compreender, a mulher jazia numa cama. Braços inertes, pernas inertes. Por algum motivo que ela desconhecia havia um pânico do mover-se. Mover-se doeria? E se sua pele abrisse pelo esforço; pelo desejo agudo dos ossos de rompê-la para fugir dali. Para fugir de um corpo que a eles não pertencia, um corpo do qual a dona não tinha memória e que, mais que ela mesma, lhe parecia um peso; um estorvo.

Passaram-se minutos, dezenas arrastadas deles. Horas de caminhar lento passaram antes que Ana abrisse os olhos castanhos e opacos no exato instante em que a curiosidade tão natural da alma humana venceu o medo. Os olhos viram o branco corpo que não reconheciam, mas que a eles pertencia. Um vestido branco e leve de delicadas flores amarelas e pálidas cobria-lhe o ventre, parte das pernas; a metade das coxas. Os olhos desceram pelas coxas, a canela... A unha do dedo maior do pé esquerdo sumira. O dedo latejava, ou ela imaginava-o a latejar porque é exatamente isso que se espera de um dedo cuja unha foi arrancada. Arrancaram-na? Quando? Por quê?... Por quê?... Por quê?


Os porquês reproduziam-se em ecos doloridos, magoados. Os porquês provocaram lágrimas silenciosas e órfãs. Ana não se reconhecia, e sentia-se dona de uma solidão tão ampla quanto podia ser a solidão de quem não se sabe. O choro ganhou ânimo para afogar os olhos da menina que os tornou a fechar. Ana queria esquecer-se completamente.


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