sábado, 8 de maio de 2021

DOM CASMURRO

 


DOM CASMURRO

 

Ana colocara água morna, flores de lavanda e camomila na bacia metálica e admirava as delicadas flores a tocar seus pés de unhas vermelhas feitas. Ela queria aquecer um pouco os pés que eram, indelicadamente, frios mesmo nas tardes de outono. João, depois de tanto tempo, anos, uma vida inteira para ela lhe parecia, estaria mais uma vez ali; no apartamento que um dia foi dele também.

Cassia Eller enchia a sala e a varanda com sua voz enquanto vagavam os pensamentos e as flores à deriva. Porque João viria visitá-la, Ana não sabia. Como não sabia o porquê dessas repentinas saudades de ouvir repetidamente a voz de Cassia Eller. Ela se foi cedo demais. Ele também.  E muito provavelmente João ficaria pouco tempo por aqui; um dia? Um par de horas, minutos talvez? Não importava.

Ele era seu menino, mesmo não o sendo mais. Seu preto, o único por quem ela um dia tinha se perdido e permitido todos os sentimentos sabidos e os desconhecidos também. João era um cometa. Para ela ele era um acontecimento divino; mesmo conhecendo todos os defeitos que ele tinha. Seus silêncios pesados e as inocentes mentiras; a falta de coragem que o detinha.

Porém, como não perdoar todos os defeitos de um homem tão delicado como aquele? Pensava a menina que já não o era. João era, para ela, alguém muito forte que sempre se recusou, por gentileza e um pouco de preguiça, a utilizar-se da força que tinha. Ele decidira ser uma flor colorida e bonita ao invés de um monstro. Ele a encantara.

Há tanto tempo ele a encantara, homem-sereia, com aquela voz. Tanto tempo passara sem que eles se vissem e não há motivos para esse retorno agora. Tanto mudou. Tudo mudou. “Eu mudei tanto”, pensou uma assustada Ana.

Ela tinha envelhecido e os cabelos não eram os mesmos, nem as mãos. Ele também mudara e estava maior. Ela talvez diminuíra. Porém, no chão da sala ao lado da bacia metálica ainda estavam as havaianas descansando. E ela ainda gostava de ouvir música boa muito alta. Ela ainda se arrepiava ao pensar nele.

Ah... Ana fechou os olhos sentindo os pés mornos e o sol suave do fim de tarde no colo. Pensou em João. Em suas mãos e suas pernas, nos seus dentes na carne dela... e o respirar dela ficou difícil, gordo e apressado. Pensou na língua dele a passear e na língua dela a vagar por todos os cantos e recantos...

Ela não sabia porque João havia decidido que deveria vir vê-la. Talvez fosse o tédio tão comum à vida, talvez quisesse algum favor ou apenas vinha buscar algo esquecido numa das gavetas do quarto de dormir. Talvez... porém nada disso importava para ela. Não. Nada importava porque apenas a ideia dele ali na sua frente a fazia sorrir. E isso, isso era a única coisa que a ela qualquer sentido fazia.

Ana enxugara os pés que agora descansavam no chinelo branco e mal eram vistos sob a saia do longo vestido azul de flores miúdas. Vestido novo e que ela comprara porque lhe fazia sentir o cheiro da primavera na praia. João gostava da primavera como ela. Tanto que o humor dele melhorava com a chegada das flores e dos dias mais claros. João sorria mais na primavera, e ela achou que o tal vestido seria bom para a ocasião.

Ela estava abrindo a garrafa de vinho quando soou a campainha.

“Oi, sou eu.” Disse um tanto cheia de si a indefectível voz de João pelo interfone.

“A porta está aberta, sobe.” Disse Ana num vagar manso.

A porta se abriu.

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