quarta-feira, 17 de março de 2021

Bichos aCuados

 



Bichos aCuados

 

Andamos feito bichos acuados. Cabeça baixa, rabo entre as pernas, e o medo desconfiado de quem já apanhou tantas vezes na vida que teme sempre a aproximação de uma mão que se estende. Viramos bichos desconfiados, bichos frios do asfalto. Bichos tristes; acabrunhados.

Não sei bem como as pessoas no meu país, e no mundo, se sentem depois de um ano inteiro com a vida que virada de ponta cabeça. Também não sei bem como me sinto. Um tanto apática, um pouco covarde, mais indiferente de deveria estar, de coração partido diariamente. Cheia de ideias e coisas a dizer, a sentir que as palavras, anêmicas, morrem na garganta sem coragem para até a boca chegar.

Sinto vontade de chorar todo santo dia e, ao mesmo tempo, quero ser forte. Sou forte. Sou forte, contudo anda um tanto difícil ver tanta gente mais perdida do que eu. Tantos sem rumo, sem comida, sem casa, sem esperança, sem futuro. O Brasil perdeu-se, e numa curva mais fechada, sem freios, rolou barranco abaixo. Rolamos, quase todos, junto com a nação.

Somos uma nação, não? Não sei. A mim me parece que estamos a nos assemelhar muito mais a uma turba que só deseja sobreviver. Seja lá como for. Nunca antes meu mundo se pareceu tanto com o mundo do livro “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago. Em São Paulo, onde cenas do filme foram rodadas, parecemos viver, em modo menos fantástico, a tragédia da perda da nossa humanidade paulatinamente.

Hoje o poema “O Bicho” de Manuel Bandeira ecoa na minha cabeça.

 

O Bicho

 

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

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