domingo, 11 de março de 2012

Chuva





É incrível como nossa memória olfativa é aguçada, traz tão rápido a cor à cenas que já estavam em preto e branco em nossas memórias.  Ainda não tinha caído a primeira gota, mas bastou o cheiro da chuva que o vento carregava pra me fazer morrer de vontade! A cena que volta não ganha só colorido, ganha movimento também. Sou eu na tela, num dia muito quente, uns 9 anos, de short e camiseta de propaganda eleitoral, brincando na rua com meus primos, brindados com a chuva que desta vez não se anunciou direito, driblando nossas mães que nos obrigariam a voltar pra casa. Que delícia! Só não era mais gostoso que banho de mangueira, mas esse custava, era denunciado na conta de água e por isso era muito mais mal visto que o banho de chuva.



A cena colorida em minha mente pára de se mover um instante para me levar a muitos anos depois: a roupa é outra (mas confesso que ainda tenho algumas dessas horrorosas camisetas com a cara de algum vereador), as companhias não são meus companheiros de taco, mas sim os motoristas dos outros carros, parados no mesmo local há mais de 15 minutos. Mas a surpresa da chuva é a mesma. E a vontade é sair do carro e curtir. E por que não? Estava tudo parado mesmo, o calor era infernal e o convite, tentador.



Abro a porta do carro, fico em pé olhando pro céu e começa a diversão. Percebo a movimentação das pessoas ao lado, comentando, espiando, estranhando ou talvez até invejando, mas não me intimido. Começo a correr. Não correr da chuva, mas para a chuva, pela chuva, sentindo a força dos pingos aumentando. Curto cada passada e noto algumas pessoas saindo de seus carros também. Puxo papo com o motorista ao lado com a mesma facilidade que fazíamos amizades quando crianças e descubro que ele agora está torcendo para o transito não andar mesmo, para aquela cena não precisar terminar.



Naqueles momentos a chuva foi a catapulta que me jogou muito longe, de volta à época das brincadeiras na rua, do comer fruta direto do pé, tomar água da torneira e ter medo do homem do saco, que passava na nossa rua para recolher as crianças desobedientes. Além de ficarmos fora do alcance dos olhos de nossas mães, nossas outras preocupações eram não deixar a bolinha de tênis cair na casa do vizinho alemão, porque ele nunca as devolvia, mas pior, nunca, em hipótese alguma, passar na rua dos ciganos. A ignorância dos adultos é algo que deveria ser controlada com rigor quando esse adulto é responsável por educar uma criança! Quantas histórias horríveis e fantasiosas escutamos sobre aquela família de ciganos, histórias que nos perseguiam durante o sono e nos faziam dar uma volta imensa ao voltar da escola somente para não passar na rua deles. Se naquela época eu pudesse imaginar que a menininha cigana que eu tinha visto algumas vezes adorava brincar na chuva assim como eu, se eu pudesse pensar que era a mesma chuva para nós duas, o mesmo ar, o mesmo sol, talvez isso tivesse diminuído um pouco o pavor tão bem alimentado dentro de mim.



Sou arrancada daquela chuva da infância por um som enfurecido de buzina. O trânsito andou e percebo que estou seca, que não tive coragem de sair na chuva, que foi só mais uma vontade a qual não cedi. Acelero o carro frustrada por todas as chuvas de minha vida que deixei de curtir.


Texto de Ana Paula Guedes

(amiga trazida pelo destino e Irmã por escolha do meu coração)

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