domingo, 17 de março de 2019

Acordar




Elucubrações das Minhocas que Moram na Minha Cabeça

Acordar

Nunca gostei de dirigir; coisa estranha isso de ir feito sardinha numa latinha por aí. Ainda lembro-me de me sentir muito mal dentro do meu carro nos primeiros meses pós carteira de motorista adquirida. Mais de 20 anos passaram e hoje, por efeito da repetição voluntária, apesar da má vontade minha, dirigir um carro tornou-se natural. Mas, não o é.

Natural é usar as pernas e andar por aí. A vida de verdade não acontece dentro de carros e, às vezes, nem entre as tais quatro paredes. A vida acontece na rua onde, ao invés de faróis, temos olhos para enxergar mais claramente a tudo aquilo que tentamos ignorar por não fazer parte da “nossa vida”. Pois, o fato é que nós buscamos criar uma história bonita e perfeitinha e dela fazer a vida que chamamos de nossa. O problema é que nesse tal faz-de-conta do cotidiano escondemos nas gavetas e em baús escuros todos os defeitos que, para o bem da nação, não vemos.

Quinze minutos caminhando até a estação mais próxima do metrô (porque a minha estação, sim ela será minha, ainda não foi inaugurada) e depois de ver muita coisa que ainda não tinha percebido, apesar de, de carro, já ter passado por este caminho, vejo um homem que de todos se destaca. Saco sujo às costas, roupas pretas por lavar há dias, o cabelo desgrenhado; a conversar com ele mesmo no meio da rua.

Não voltarei a vê-lo, muito provavelmente, porém cá está de braços dados com minhas minhocas na cabeça o tal homem mesmo depois de alguns dias. Alguns passos a minha frente ele observa um resto de comida dentro de um saquinho de papel branco jogado ao chão. Penso: ele vai comê-lo. Ele o apanha e come de maneira tão cotidiana como o tal pensamento que a minha mente me veio. Ambos, ele e eu, conhecemos a vida neste país. A diferença é que me dou ao luxo de ignorá-la quase todo santo dia. Pois... A vida tem destas merdas o tempo todo; 24 por 7 e sem direito a piscar os olhos.

Eu, como sempre faço quando vejo a vida mais de perto, penso: isso é Deus a me sussurrar ao ouvido (e logo pela manhã) – “Acorda, sua filha da puta mimada, e pára de reclamar da sua vida que você não sabe o que é sofrer.” E eu, com medo de que, quiçá, Deus mesmo idoso ainda tenha a mira muito boa e me acerte com um raio na cabeça, concordo em número, gênero e grau. Está na hora de acordar Maristela.

p.s. Não houve como não me lembrar de Manuel Bandeira e de pensar que estamos num ciclo vicioso eterno em nosso país. Então, cá ele está.

O BICHO


Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Rio, 27 de dezembro de 1947




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