domingo, 11 de agosto de 2019

O Corpo e Gil

Grupo Corpo - 2019 Gil


O Corpo e Gil


O Grupo Corpo de dança nasceu em 1975 e à época eu nem sabia que era gente ainda. Meu mundo era tão grande quanto os limites de minha casa, que me parecia muito maior do que realmente era, a escola em meu primeiro ano fora dos limites domésticos sozinha, e os lugares aonde íamos em família. A dança moderna brasileira e eu estávamos a descobrir quem éramos e a que mundo pertencíamos.

Não me lembro de quando foi a primeira vez que vi o grupo Corpo no palco e nem qual foi a peça vista. Lembro-me, lá pelos 16 anos, de ir assistir a uma aula aberta para nós no teatro antes de um dos espetáculos porque minha ex-professora de Ballet, Solange Cordeiro, fazia parte do grupo então. Não foi a primeira vez que estávamos tão perto de bailarinos profissionais, mas já então, quase final do anos oitenta, o Grupo Corpo impunha respeito e admiração por sua modernidade e pela identidade de seus movimentos únicos. O Corpo trouxera Minas Gerais, nossas heranças indígenas e africanas e a identidade brasileira para o mundo da dança.

Lembro-me, porém, como se fosse há poucos dias, do espanto e do encanto de assistir à Missa do Orfanado em 1989 no Teatro Municipal de São Paulo. Eu tinha 18 anos, e o Corpo no palco mostrava que tinha se tornado gente grande de verdade; como nenhuma companhia brasileira o fizera até o momento. Assim que as cortinas abriram e a música de Mozart começou como um lamento, bailarinos dramáticos e precisos, sentidos, fizeram com que a minha respiração parasse por alguns instantes. Meus olhos não acreditavam no que viam e minha alma foi alcançada como nunca antes durante um peça de dança. Fui engolida, absorvida, pelo Corpo e sua Missa do Orfanato dentro do teatro.

Desde então, assistir a uma peça do Corpo é algo a ser celebrado e a ser esperado com todas as expectativas que o encanto pode trazer. E, a bem da verdade, muitas outras vezes fui surpreendida e encantada pela beleza, a força e a carga emocional das coreografias apresentadas por Rodrigo Pederneiras. Seus movimentos são únicos e traduzem a dança natural e ancestral dos corpos brasileiros. E, por isso, ele é genial.

Nessa semana, mais de 30 anos depois de meu primeiro espetáculo do Corpo, assisti à Gil, a nova coreografia do grupo, com olhos muito atentos, e a esperar muito de uma peça que traz meu grupo de dança nacional mais querido dançando a obra de Gilberto Gil. E é fato que criar muitas expectativas não é algo muito bom, pois, via de regra, algumas das tais são sempre frustradas porque a realidade jamais será aquilo que fantasiamos que ela deveria ser.

Gil é belo, tem música luminosa, os bailarinos estão excelentes como de costume e a assinatura já tão conhecida por nós lá está: os movimentos coreográficos típicos do Grupo Corpo em toda a sua essência e clareza. Contudo, faltou-me o espanto já tão típico depois de assistir a um novo trabalho. E isso deu-me nós na cabeça. Estariam a estética e seu repertório do grupo já exauridos depois de tantos anos? Já assisti ao Corpo vezes demais para dever esperar ser surpreendida por eles?

Depois de alguns dias, pensando no que vi, sinto que em parte tudo isso é verdade. Estou realmente muito acostumada à dança deste grupo mineiro que tornou-se já um clássico da moderna dança do meu país. Porém, mais do que algo repetido, Gil trouxe a essência da dança do Corpo de forma pura. Influenciados pela dança de Xango, o orixá, e a música de Gil, vi um Corpo dançando conectado à terra e às nossas raízes numa coreografia cheia de ritmo e leve, com gosto de doce de leite e tambor; avessa aos grandes malabarismos ou efeitos cenográficos.

O novo espetáculo do Corpo parece simples, fácil de ser dançado; despretensioso mesmo. Porém, quando ele acaba, nos parece que os tais 40 minutos não passaram de 20 ou trinta minutinhos corridos. Gil flui como os riachos, sem grandes quedas e assombros, e nos envolve mais do que nos damos conta. É ensolarado, alegre e suave como o músico que representa.

Pois, depois de alguns dias, e da confusão inicial que me apareceu na cachola assim que as cortinas foram cerradas, percebo e sinto que gostei muito mais do tal Gil do Corpo do que consegui entender num primeiro momento. E cá estou, surpreendentemente, surpresa pelo Corpo mais uma vez.

Grupo Corpo - Gil




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