quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Páginas Úmidas



Páginas Úmidas

Faço força para não chorar no vagão do metrô. Sim. Pois, chorar assim, de um repente, num vagão de transporte público em São Paulo não me parece adequado. Aperto os olhos e engulo o choro como a vida mo ensinou a fazer. Respiro fundo e tento compreender o que está a passar diante dos meus olhos. A visão embaça, as letras dançam, e não posso crer no que leio. Imani Nsambe, uma menina Moçambicana, que numa virada de página chega aos 95 anos de idade, de mim se despede com dor. A dor dela e a dor minha misturam-se porque sentimos ela e eu o mesmo aperto no peito. E, por isso, tão difícil é segurar as lágrimas que engulo e me descem atravessadas pela garganta.

Mia Couto, com seus três volumes de As Areias do Imperador e suas mais de mil páginas, me trouxe a emoção que Gabriel García Márquez trouxera com O Amor Nos Tempos do Cólera. De um repente, com uma virada de página, sem que disso eu me apercebesse, brota-me o choro como se alguma torneira tivesse sido aberta por detrás dos olhos. Queria estar em casa, penso eu com grande incômodo. E, a verdade, é que assim que chego ao meu pequeno apartamento choro o choro retido por meia hora. Queria poder abraçar Imani. Queria não saber como nos atingem as dores dos amores perdidos. Mas eu sei.

Fica na ponta da minha língua uma sentença ditada pelos dois escritores de formas e maneiras tão distintas: o amor não vivido como o deveria ser jamais morre. Pois... Tento imaginar os anos que ainda me restam a carregar o meu amor e como acomodar algo tão grande à realidade das coisas miúdas e cotidianas. Sinto tanta vontade de falar com o meu Preto e o mundo enche-se de água salgada me turvando a visão mais uma vez e como há anos. Mas não o faço; não o farei. Tudo tem começo, meio e fim - como as mais de mil páginas úmidas de Mia Couto, mesmo que cá por dentro dure para sempre. C’est la vie.

p.s. Quem nunca leu Gabriel García Márquez e/ou Mia Couto o deveriam fazer, pois ampliar os limites da alma que carregamos no peito será sempre um dos mais belos e importantes atos de toda e qualquer existência.

Por algum motivo desconhecido vem-me Cartola à cabeça. Cá está ele.


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