domingo, 19 de março de 2017

O Espelho



O Espelho

Ana observava seu reflexo no espelho do quarto há alguns minutos naquela ensolarada manhã fria de inverno. Lá fora tudo era movimento. Um gato pardo caminhava sobre os muros verdes da casa onde algumas flores teimosas ainda resistiam agarradas às trepadeiras que cobriam o acinzentado cimento do qual o muro era feito. Um pássaro cantava na mangueira sem frutos e podiam ser adivinhados os pensamentos famintos do gato. Na rua alguns meninos brincavam com uma bola, e João escrevia no jardim.

Apenas Ana estava estática por instantes naquele dia claro e pacato que contrastava agudamente com o pavor que nela instalara-se. Naquela manhã Ana acordou e percebeu que não se reconhecia mais no espelho. Aquela mulher que a sua frente cismava não era ela. Tudo nela parecia distinto do que fora na noite anterior e, por mais que ela buscasse compreender o que via a sua frente, na verdade não o podia fazer. Quando ocorrera tal mudança? João terá notado tal transformação silenciosa? Ela pensava.

Aqueles olhos não eram os seus, como não era sua aquela boca muda e sem clara definição na porção inferior da face. O nariz crescera, os olhos diminuíram e o queixo tinha perdido o seu ar de quem tudo sabia; decidido e cheio de autoridade. Tudo naquela face parecia para Ana uma mancha indefinida que se diluía n’água enquanto ela a fitava. Aquele rosto era uma massa mal esculpida e pouco, quase nada, refletia a face que a ela pertencia.

Depois de alguns minutos paralisada, angustiada, Ana inclinou-se para limpar o espelho com a manga da blusa de seu pijama azul turquesa. Ele estava sujo. Ele deveria estar sujo. Sim, pensava ela, a sujeira causou tal deformação e enganou aos meus olhos míopes e sonolentos. Afinal, nenhuma transformação profunda como essa ocorreria da noite para o dia. Nenhuma.

Ana limpou a superfície do espelho com calma e dedicação. Lenta e suavemente, quase com carinho, ela passava o tecido que cobria seu antebraço sobre o espelho.  Certa de que aquela ação a tudo mudaria, Ana dedicava-se com atenção ao ato que traria de volta o rosto que sempre havia sido seu. O rosto que ela tão bem conhecia e que a agradava apesar de não ser mais bonito do que a maioria de todos os rostos que por ela haviam passado durante a vida. Não importava para ela a beleza ou a falta dela em seu rosto. Importava-a o fato de que nele, e apenas nele, ela era capaz de reconhecer-se.

Ana sentou-se novamente de olhos postados ao chão; quase fechados. Respirou com calma por dez vezes como fazia para baixar o ritmo do coração depois de uma corrida e olhou-se mais uma vez no espelho. João entrou no quarto e sorriu para ela com um doce bom dia dito sem aflições. Ana virou-se de costas para o espelho e sorriu.

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