domingo, 22 de outubro de 2017

A visão


A visão

A polícia chegara não mais de cinco minutos depois de ter sido chamada, e o pequeno apartamento estava cheia de homens sérios. Ajoelhado no chão, André chorava com a cabeça de Ana ensanguentada nas mãos. Havia sangue nas roupas dele e o que parecia ser a arma do crime no chão; uma colher de sopa suja. O desespero e a confusão de André gritavam pelos olhos, ele não entendia quem podia ter feito aquilo. Por que alguém ferira Ana de maneira tão cruel?

 Os paramédicos afastaram o namorado para cuidar da mulher desmaiada no chão. André foi colocado na poltrona azul celeste à esquerda de Ana na sala de estar. A televisão ainda estava ligada e o volume baixo dificultava a audição do que o repórter dizia no jornal da noite. Algo sobre a política no país talvez. Daquela perspectiva André via claramente o rosto de sua namorada e algo curioso o intrigava; Ana parecia tranquila. Apesar do sangue, apesar da confusão estabelecida desde que ele entrara e a vira no chão; apesar de tudo, ela parecia dormir como sempre. Profundamente, sem sonhos ou pesadelos. Sem avisos, de um repente instantâneo, André vomitou ruidosamente nos sapatos do policial que o assistia. Ele vira, sem margem a qualquer dúvida, os paramédicos abrirem a mão de sua namorada e dela retirarem um globo ocular.

Um par de dias havia passado e Ana continuava no hospital, calada. Seu namorado a acompanhava cuidadosamente, porém eram nítidos o sofrimento e o incômodo dele. Ela, mesmo apenas com o olho que restara, podia vê-lo sem esforço. André murchava a seu lado. Aquilo era tão triste e Ana chorava em silêncio quando a luz estava apagada. Ela dormia pouco e ressentia em demasia a tamanho sofrimento de alguém tão gentil quanto ele. Ela se sentia mal por isso. Ana sentia-se muito incomodada com o sofrimento de André e queria vê-lo longe. O sofrimento dele era culpa dela e aquilo a corroía interna e lentamente. Queria poder mandá-lo embora. Queria estar sozinha. Pensava ela.

Até o momento nada havia sido descoberto sobre o ocorrido no pequeno apartamento e isso, mais do que a grotesca violência sem sentido, perturbava ao rapaz que buscava sempre razões para tudo. A polícia não descobrira nenhuma pista e Ana dizia não se lembrar de nada. Ela se lembrava, apenas, de chegar a casa como sempre e de estar a preparar algo para eles comerem. Depois disso, apenas lembranças vagas sobre o caminho ao hospital.

André irritara-se quando alguém sugeriu que Ana, ela própria, infligira a si mesma seus ferimentos. Aquilo era uma loucura sem sentido. Um absurdo. Ela jamais faria isso. Tudo estava bem; eles eram felizes. Ela era tranquila e divertida. Como imaginar que ela teria motivos e a coragem para arrancar seu próprio olho esquerdo? Ela não se lembrava de nada porque seu cérebro bloqueara o fato. Bloqueara o horror do que havia acontecido. Afirmava o rapaz que, para si mesmo, repetia com frouxa convicção que isso era muito mais lógico. Isso era o que havia acontecido.

Ana continuava muito mais calada do que o normal depois de voltar para casa. Não queria ver a seus amigos, não queria sair. E passava muito tempo deitada na cama a ouvir músicas antigas. André dizia a ela que tudo aquilo passaria com o tempo; que tudo voltaria a ser como antes. Porém, a menina sabia que nada mais seria como antes, apesar da pequena satisfação que agora ela sentia por ter a visão reduzida. Pois assim ela pôde amenizar um pouco a dor de ver e perceber o que não queria. A realidade para Ana tornara-se feia demais.

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