quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

O primeiro mês


O primeiro mês

Janeiro mal começou, estamos no seu terceiro dia, e o ano que deveria ser novo em folha parece-me já meio usado. Gasto mesmo. Não sei bem se foi pelo fato de eu não ter pulado as tais sete ondas em suas primeiras horas, ou se por eu não ter levado à Iemanjá suas flores brancas; sei lá. O fato é que 2018 nasceu velho para mim, feito criança sem infância. Feito um miúdo que nasceu com alma idosa e sabe e diz coisas sobre as quais ainda não deveria saber. O 2018 está com carita de reencarnação de 2017; primo-irmão de 2016.

Quiçá isso sempre tenha sido assim e o tempo, além de relativo, não passe de fatos mal disfarçados a repetirem-se num looping infinito. Um labirinto. Bem, talvez o problema não esteja no tempo em si, mas no fato de eu já ter vivido um bom bocado de anos e, por isso, saber de cor que as coisas não mudam tão rapidamente como a nós nos gostaria. Pois, a tal da sabedoria que com a idade chega, em alguns momentos, é de fato uma estraga prazeres plácida, paciente e observadora.

Seja lá por um motivo ou pelo outro, seja lá pela total falta de motivos que me assolou no final do último dezembro, a verdade é que não me dei nem ao menos ao trabalho de uma mirrada listinha-descomprometida de metas para os 365 dias vindouros. Uma palavra sequer. Modo-bicho-preguiça on, ativado para ver o ano acabar em barranco como me diria minha mãe. Eita!

De novo, novo de veras mesmo, apenas dei-me ao luxo do novo romance de Ariano Suassuna. Livro lindo e bem cuidado, trabalho delicado editado em dois volumes de capa dura e cheio de litogravuras à la livro de cordel. Trabalho cheio de carinho, gerado e criado feito filho: com todo o zelo, a paciência e o tempo que uma criação de tal vulto requer. Dom Pantero no Palco dos Pecadores é fruto de tudo que foi seu autor, Ariano o senhor do sertão, e da cultura que nos faz brasileiros. Portanto, ele traz consigo muito do que somos todos nós.

Bem, nos finalmentes, posso dizer que o tal ano não me começou nada mal. Afinal, não poderá ser ruim um ano que começa com literatura, prosa e poesia e terá direito, além de muito trabalho e estudo, a Copa do Mundo e Carnaval.


Abaixo: Iluminogravura e poema de Ariano Suassuna

 ‘A Morte – A Moça Caetana’, Ariano Suassuna (Recife, 1980) [Com tema de Deborah Brennand]


Eu vi a Morte, a moça Caetana,
com o Manto negro, rubro e amarelo.
Vi o inocente olhar, puro e perverso,
e os dentes de Coral da desumana.

Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel,
os peitos fascinantes e esquisitos.
Na mão direita, a Cobra cascavel,
e na esquerda a Coral, rubi maldito.

Na fronte, uma coroa e o Gavião.
Nas espáduas, as Asas deslumbrantes
que, rufiando nas pedras do Sertão,

pairavam sobre Urtigas causticantes,
caules de prata, espinhos estrelados
e os cachos do meu Sangue iluminado.


– Ariano Suassuna, “Dez Sonetos com Mote Alheio”. Recife: edição manuscrita e iluminogravura pelo autor, 1980

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