quarta-feira, 21 de junho de 2017

A visão



A visão

Ana entrou na rua que não era mais a sua e estacionou o carro preto à esquerda do edifício no número 282, próximo à esquina. Uma árvore baixa, ainda pequena, encobria um pouco o automóvel e impedia que a motorista fosse vista da calçada. A manhã de outono estava agradável; airosa com suas cores delicadas da luz morna de um sol que ainda não despertara completamente. Ana amava as manhãs como esta, de céu azul claro quase sem nuvens, e sentia-se em paz. Quase completamente feliz.

Eram 8h de uma quarta-feira lenta e Ana pensava em tudo que teria que fazer naquele dia enquanto aguardava. Adiantara a saída de casa, não muito longe dali, com a desculpa de que tinha um compromisso de trabalho cedo pela manhã. Mentira, porém, sem remorsos, se despediu do namorado como de costume. Jantariam juntos naquela noite antes do jogo de futebol. Eram muito boas as noites caseiras de quarta-feira.

Ana gostava do namorado, até bastante, apesar de não ter planos claros e objetivos estabelecidos com ele. Moravam juntos há alguns meses e entendiam-se bem. A relação poderia durar muito, para sempre. Ela poderia também acabar no ano que logo vem e nada mudaria; as manhãs de outono continuariam agradáveis e belas para ela e a vida seguiria tranquila.

Todas as quartas essa era a rotina clandestina de Ana. Despertar um pouco mais cedo e sem preguiça, arrumar-se bem para estar bonita, inventar um motivo plausível para a tal saída-fora-de-hora, prometer um bom jantar para antes da partida de futebol e desviar-se de seu caminho usual para ficar parada por alguns minutos, meia hora, numa esquina conhecida da cidade.  Ela sabia que as mentiras não eram coisa boa; mesmo as bobas como essa. Afinal, e no final das contas, ela nada faria para além de olhar. Que mal há em olhar?

Como todos os dias, entre 8h e 8:20h da manhã o portão do edifício se abriu. De camiseta branca e larga, bermudas longas e óculos escuros ele saiu, detendo-se um pouco para uma breve conversa com o porteiro. Ana observou com atenção. Ele estava bem, parecia alegre e bem disposto. Os tênis eram novos, e ele levava seu sorriso largo e divertido; o sorriso mais bonito que seus olhos já tinham visto na vida. Ana sentia tantas saudades das palavras e da voz daquele menino; do seu menino.


João despediu-se do porteiro e seguiu à direita para a estação de Metrô caminhando sem pressa como de costume fazia. Ana observou-o até que dobrasse a esquina. Ele estava lindo; estaria sempre lindo aos olhos dela. Ligou o carro e, apesar do pesar das manhãs de quarta-feira, ela sentia-se bem. Ele estava bem e ela podia seguir tranquila por mais uma semana. À noite haveria futebol.

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