quarta-feira, 30 de junho de 2021

delicadezas


 

1

Tem os que passam, de Alice Ruiz

Tem os que passam

e tudo se passa

com passos já passados

 

tem os que partem

da pedra ao vidro

deixam tudo partido

 

e tem, ainda bem,

os que deixam

a vaga impressão

de ter ficado

 

2

 Amanhecimento, de Elisa Lucinda

De tanta noite que dormi contigo

no sono acordado dos amores

de tudo que desembocamos em amanhecimento

a aurora acabou por virar processo.

Mesmo agora

quando nossos poentes se acumulam

quando nossos destinos se torturam

no acaso ocaso das escolhas

as ternas folhas roçam

a dura parede.

nossa sede se esconde

atrás do tronco da árvore

e geme muda de modo a

só nós ouvirmos.

Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos

o pio de todas as asneiras

todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha

para um dia partirem em revoada.

Ainda que nos anoiteça

tem manhã nessa invernada

Violões, canções, invenções de alvorada...

Ninguém repara,

nossa noite está acostumada.

 

3

Eu-Mulher, de Conceição Evaristo

Uma gota de leite

me escorre entre os seios.

Uma mancha de sangue

me enfeita entre as pernas.

Meia palavra mordida

me foge da boca.

Vagos desejos insinuam esperanças.

Eu-mulher em rios vermelhos

inauguro a vida.

Em baixa voz

violento os tímpanos do mundo.

Antevejo.

Antecipo.

Antes-vivo

Antes – agora – o que há de vir.

Eu fêmea-matriz.

Eu força-motriz.

Eu-mulher

abrigo da semente

moto-contínuo

do mundo.

 

4

 Fagulha, de Ana Cristina César

Abri curiosa

o céu.

Assim, afastando de leve as cortinas.

 

Eu queria entrar,

coração ante coração,

inteiriça

ou pelo menos mover-me um pouco,

com aquela parcimônia que caracterizava

as agitações me chamando

 

Eu queria até mesmo

saber ver,

e num movimento redondo

como as ondas

que me circundavam, invisíveis,

abraçar com as retinas

cada pedacinho de matéria viva.

 

Eu queria

(só)

perceber o invislumbrável

no levíssimo que sobrevoava.

 

Eu queria

apanhar uma braçada

do infinito em luz que a mim se misturava.

 

Eu queria

captar o impercebido

nos momentos mínimos do espaço

nu e cheio

 

Eu queria

ao menos manter descerradas as cortinas

na impossibilidade de tangê-las

 

Eu não sabia

que virar pelo avesso

era uma experiência mortal.

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